quarta-feira, outubro 21, 2009

Mistério em Mallorca


“Brace yourselves for the fury of the ocean wants its toll”
Fairyland – “Master of the Waves”


“Impossível!”, pensou o Inspetor Ortiz, caminhando em círculos pelo apartamento enquanto repassava mentalmente todos os detalhes da investigação. Ao entrar para arrumar o quarto, a camareira do hotel havia encontrado Johnny O’Doe morto sobre a cama. Ele estava roxo, com os músculos todos contraídos. As articulações da mão estavam esbranquiçadas de esforço, como se ele tivesse tentado se agarrar, literalmente, à vida.

Johnny tinha trinta e dois anos e era muito conhecido no mundo, tanto pela sua capacidade de lotar estádios com seus shows, quanto pela sua disposição para festas e bebedeiras. Viera à Espanha de passagem, apenas para receber um prêmio em Mallorca. Festejou a noite inteira, voltou ao hotel sozinho, e nunca mais acordou.

O relatório do legista foi tão assustador que o comissário optou por mantê-lo em sigilo. Apesar das especulações da imprensa girarem em torno disso, não foi encontrado nenhum traço de drogas em seu organismo. Seus pulmões estavam cheios de água salgada. Havia vestígios de areia de praia no nariz e sob as unhas, mas uma análise comparativa chegou à conclusão de que não eram de nenhuma praia da Espanha. A equipe forense esquadrinhou o quarto três vezes, mas não encontrou nenhuma pista. Nada. Tudo estava impecável. Nenhum sinal de arrombamento ou luta, nem de que o corpo fora transferido para a cama.

Sentado no chão do quarto, com a cabeça entre as mãos, Ortiz ficou horas tentando rever a cena do crime de diferentes ângulos, em busca do elemento faltante que daria uma explicação para tudo. Ele tinha que estar ali em algum lugar. Lembrou do seu treinamento na Academia de Policia, quando lhe disseram que todo investigador veterano era assombrado por um crime insolúvel. Sentiu um gosto amargo subir pela garganta. Talvez esse fosse o seu.

Sentindo-se derrotado, Ortiz resolveu voltar para a delegacia. Lacrou de novo a porta do quarto e caminhou até o elevador absorto em seus pensamentos. No caminho, cumprimentou com um aceno automático o faxineiro que lavava o chão do corredor.

O faxineiro acompanhou o inspetor com o canto dos olhos, sem interromper seu trabalho. Quando a porta do elevador se fechou, ele suspirou aliviado: ninguém percebera nada. Então ele soltou o primeiro botão da camisa para admirar o objeto que trazia pendurado no pescoço e que, de algum modo, conseguira subtrair do corpo do músico antes da polícia chegar. Ele contemplou fascinado o enorme medalhão de prata cintilante que pendia da corrente de elos grossos. Haviam seis pedras verdes dispostas em círculo engastadas na superfície do disco, emolduradas por relevos parecidos com letras, mas que ele não sabia dizer o que significavam. No dia seguinte, iria procurar um antiquário no centro. Esperava conseguir uma boa quantia por ele.

Naquela noite, em seu apartamento no subúrbio, o faxineiro caiu em um sono profundo. Assim como Johnny O’Doe, esqueceu-se de tirar o medalhão do pescoço. 


Sonhou que estava em uma praia de areias brancas. Atrás dele, uma cidade prateada brilhava sob a lua cheia. Não havia visto nada assim tão bonito em toda a sua vida. A cidade ancestral e misteriosa parecia tremeluzir junto com as estrelas do céu. Um vento forte desgrenhou os seus cabelos, e ele virou-se novamente para olhar o mar. Compreendeu que estava em uma grande ilha. O mar, negro e denso como a noite, envolvia a costa em um abraço frio. Somente os pequenos reflexos da lua na água indicavam movimento. E foi aí que ele percebeu que algo estava errado. O horizonte se aproximava rapidamente, alto demais. Uma imensa muralha negra de água e fúria, que lhe parecia ser cinco, dez, vinte, muitas vezes maior que ele. Tentou acordar, mas não conseguiu. Tudo aconteceu rápido demais. O mar atingiu a ilha e obliterou a cidade, como se o oceano se fechasse sobre ela. Ele tentou agarrar-se como pode no chão, nas árvores, nas construções prateadas, mas a água implacável castigou o seu corpo e o jogou de um lado pro outro, de modo que ele nem sabia mais para que lado ficava o céu. Estava ficando sem ar.

Na manhã seguinte, um novo corpo jazia retorcido sobre a cama em um quarto trancado por dentro. Mas para esse, ninguém deu importância. Quatro dias depois, o senhorio arrombou a porta por causa do mau cheiro. Enojado, ele só se aproximou da cama porque algo muito brilhante chamou sua atenção. “Isso deve bastar para compensar os três meses de aluguéis atrasados!”, disse para si mesmo, pegando o medalhão com o seu lenço e o guardando no bolso do seu casaco. E então ligou para a policia.

7 comentários:

Unknown disse...

Medalhão FUDIDO esse, hein?? É Kriptonita caralho?? O´Doe rulessssssssss... Faxineiro devia ter enfiado o medalhão no cu. Talvez a morte do filho da puta seria mais engraçada... Beijunda.

REVOLTA

Sarah Vitti disse...

Adorei! *-*

Parabééns, Paulo! :D
Mais uma vez, né!? ^^

Andréa Amaral disse...

Por um momento vislumbrei Poe na sua narrativa cheia de suspense e mistério. Terá uma continuação? Qual é o mistério do medalhão?Muito bom.

Camila disse...

Perfeito! Como tudo o que você escreve. Dessa vez acho que ainda com uma maestria a mais, um refinamento maior... não sei ao certo... Só sei que é sempre uma grande satisfação ler seus textos e perceber o cuidado que você tem ao desenvolver a trama, o cuidado com a construção dos personagens e dos fatos. "A prisioneira" sempre foi meu favorito, mas este agora está tão interessante quanto, apesar de serem temáticas diferentes. Gosto das não-obviedade, de ser "traída" por minhas próprias impressões e de constatar que o surreal é perfeitamente cabível quando há criatividade e talento. Você é um grande escritor e além de sua habilidade natural, ainda se aprimora a cada dia. Esse é um conto que permite (e pede) uma sequência, uma continuidade, então espero que venham novas histórias sobre o medalhão e sobre o inspetor Ortiz - que a essa altura deve estar frustradíssimo - e sobre o mistério desta praia desconhecida e mortal.
Acompanharei este caso de pertinho... Beijos!!!

Mariana Pellegrini disse...

Ótimo! Nossa, um pesadelo real, daqueles de filme do Freddy Krueger hein? Hehe

Parabéns Paulo, muito bom teu conto.
;)

galak disse...

A grande sacada desse conto é simplesmente não saber o que aconteceu (e, creio eu, é melhor que não saibamos...muahuahuahua).

Ferris disse...

Só faltou o medalhão ligar pro cara dizendo "seven days"...

KKKKKKKKKKKKKKK

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