terça-feira, junho 02, 2009

Sala de Embarque

“Cause it costs to be alive, my friend
And this life that someone merely gave to you
That's the price you pay
Minute by minute
You beg for a minute more
Kamelot “The Human Stain”

Aeroporto Internacional do Galeão, Rio de Janeiro. A sala de embarque estava lotada. Segurei mais forte a mão da minha filha que, do alto dos seus quatro anos, deve ter pensado o mesmo que eu: ela me encarou com seus olhinhos castanhos intensos e, com um longo suspiro, abraçou firmemente junto ao seu corpo miúdo a revista de colorir que havia acabado de ganhar. E lá fomos nós na difícil missão de encontrar, no meio daquele mar de gente, algum lugar pra sentar e aguardar os 30 minutos que nos separavam de nosso vôo para Miami.

Atravessamos o espaço com dificuldade, sem o menor sinal de cadeiras disponíveis. Já estava pensando em alternativas pra entreter a pequena se tivéssemos que esperar em pé, quando um casal começou a brigar. Uma moça bonita e muito arrumada, transtornada porque o seu vôo estava atrasado, insistia para que o seu marido, um sujeito atarracado de cara fechada, fosse atrás de informações. Eu conhecia bem o final dessa história pois tenho minha própria esposa geniosa me aguardando em casa. Não ia demorar. Dito e feito: o homem levantou de rompante, bufando, e saiu em direção ao balcão de informações. Sua esposa, assustada e envergonhada com os olhares que se dirigiam pra ela, saiu atrás dele. E nós corremos para ocupar suas cadeiras.

Confortavelmente instalados, entreguei àquelas mãozinhas ansiosas que agarravam o meu casaco o que elas queriam: seus lápis coloridos. Observei a alegria estampada naquele rostinho claro quando ela abriu o seu livro e começou a pintar, e então puxei do bolso meu BlackBerry para tentar adiantar algum assunto que pudesse aliviar a tortura do dia seguinte: uma segunda-feira cheia de compromissos após uma longa viagem noturna. No auto-falante, uma voz feminina disse que o embarque para o vôo 447 da Air France, com destino a Paris, estava liberado.

Nem bem tinha começado a responder as mensagens, minha filha subiu em sua cadeira e ficou em pé, apoiando seu peso no meu ombro esquerdo. Virei para chamar-lhe a atenção e encontrei o seu rostinho vidrado olhando por cima de mim. Sua expressão era de um êxtase meio incrédulo, mas o que deixou minhas pernas moles foram seus olhos: muito mais claros do que o normal, eles cintilavam em lampejos de amarelo e laranja, como se o sol incidisse diretamente sobre eles. Anjos, Papai! Olhando hipnotizado para os seus olhos, não consegui reagir ao que ela tinha dito. Olha! Quantos! Vendo que eu ainda não reagia, ela teve uma daquelas reações que a faziam tão parecida com sua mãe: ela colocou as pequeninas mãos sobre o meu rosto e o virou com firmeza para o lado oposto, para que eu visse. E a cena que eu vi foi a mais incrível de toda a minha vida. Uma fila enorme de anjos banhados em uma aura dourada, que os fazia tremeluzir de dentro pra fora e não deixava a vista se firmar por completo. Deviam ser uns duzentos. Tinham halos de luz sobre a cabeça e asas muito brancas, mas era possível distinguir, ainda que transfigurados, seus trajes humanos: executivos, turistas, estudantes, idosos, mães com seus filhos. Uns conversavam alegremente, outros falavam de problemas de trabalho, muitos brincavam em grupo enquanto outros apenas observavam a movimentação. Pouco a pouco, a fila foi saindo pelo portão em direção ao avião.

Permaneci incapaz de me mexer durante quase dez minutos, evitando até mesmo respirar até que o último anjo desaparecesse dentro do túnel. Senti apenas os braços de minha filha ao redor do meu pescoço e meus dedos deslizando involuntariamente sobre o teclado do telefone.

Quando eles se foram, foi como se eu acordasse de um sonho. As cores voltaram ao normal à medida que meus olhos foram se acostumando com as luzes artificiais do ambiente. Ninguém mais na sala dava sinais de ter visto o que nós havíamos visto. Todos pareciam completamente imersos em seus mundinhos particulares: revistas, livros, jornais, TV. Foi aí que eu tomei coragem e baixei os olhos para o telefone. Na tela, apenas cinco letras: A-D-I-E-U.

E o avião subiu, desaparecendo no céu.

Um comentário:

Camila disse...

Cara... isso parece cena de 'Premonição', só que poeticamente falando, é muito melhor!!!

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