domingo, junho 07, 2009

Reencontro

"Blank face in the windowpane
Made clear in seconds of light
Disappears and returns again
Counting hours, Searching the night"

Opeth ‘Windowpane’

O apartamento já está quase vazio. Sobraram apenas o pequeno sofá e algumas fotografias emolduradas na parede. Esse excesso de espaço me deixa ainda mais ansioso, mas tudo que eu posso fazer agora é esperar.

Pela janela observo as crianças da vizinhança brincando no parque próximo, até que, com chegada da noite, elas retornam às suas casas como se estivessem sendo puxadas por linhas invisíveis, deixando a rua deserta.

Silêncio.

Subitamente eu tomo consciência do espaço ao meu redor. O apartamento inteiro parece estar vivo, consigo sentir sua respiração sob meus pés. Como um eco da minha percepção, a brisa noturna entra pela janela e arrepia até o último pêlo do meu corpo. Sinto na pele o farfalhar das folhas das árvores no parque, as batidas do coração de uma ave noturna, o orvalho se condensando nas janelas das construções vizinhas. Fecho os olhos e sinto o mundo convergir pra dentro de mim com violência, minha percepção se estende vertiginosamente por quilômetros como se as fronteiras físicas se desfizessem com a brisa gelada. De repente, bem próximo a mim, uma certeza.

Abro os olhos e viro para o interior da sala. Ela está lá, parada, a cabeça encostada no batente da porta. Morena, alta, pele muito branca. Olhando pra mim muito curiosa, com seus olhos negros profundos e serenos. Um olhar que eu conhecia bem.

– Você me encontrou!

– Você foi sutil como um terremoto.

– Ainda assim não tinha certeza que funcionaria.

– Aqui estou!

Ela se aproxima e me abraça, encostando a cabeça no meu peito. Um toque frio que me deixa completamente à vontade, me transportando no tempo e no espaço.

Vinte anos atrás, uma criança completamente assustada num hospital. Tubos, rostos preocupados e dor, muita dor. Os remédios que me deram fizeram meus cabelos cair, a boca tinha sempre um gosto amargo. Vinte semanas de paredes brancas e comida sem gosto, que quase nunca parava no meu estômago. Minha cabeça doía a ponto de explodir, minha vista turvava e, se eu estivesse em um dia de sorte, desmaiava de dor. Sempre que eu acordava dessas crises, uma garotinha da minha idade estava ao meu lado, me olhando com um par de olhos negros ansiosos, a mão sobre o meu rosto. Ela ficava conversando e brincando comigo até alguém entrar no quarto, quando ela dava um jeito de sumir.

Seus dedos percorrem suavemente meu rosto.

– A vida foi generosa com você.

– Eu nunca achei que eu fosse capaz de sobreviver àquilo.

– Nem eu!

O fato é que melhorei. Os médicos resolveram tentar mexer na minha cabeça pra ver se davam um fim naquilo. Ainda lembro de ter acordado assustado depois da cirurgia, ligado em um monte de aparelhos. Ela segurava minha mão firmemente. Olhou fundo nos meus olhos, me acalmou e me acariciou até o sono me levar novamente. Nunca mais a vi.

– Eu nunca consegui te esquecer!

– Eu nunca me afastei completamente...

– Então todos aqueles sonhos.... era você?

– Sim...

O seu abraço fica mais apertado, meu coração dispara, os profundos cortes em meus pulsos doem. Embora o sangue já comece a faltar em minhas veias, eu não poderia me sentir mais vivo. No meu íntimo apenas desejo que esse momento dure para sempre.

Mas a brisa voltou a entrar pela janela, enchendo a sala com a vida lá fora. Sinto um carro negro parar em frente ao prédio. Quatro homens descendo apressados. É ridículo como eles tentam não fazer barulho. Um deles está forçando a porta. Descobriram o que eu havia feito, afinal.

– Eu preciso ir – ela diz, enterrando ainda mais a cabeça no meu peito.

– Então isso é um adeus?

– Não! – ela disse olhando bem dentro dos meus olhos – Dessa vez, você vem comigo.

Então ela me beija, e o toque dos seus lábios pára o tempo, como se todo o sentido da vida estivesse aqui, nesse instante. Deixo minha alma seguir o seu destino enquanto ela saboreia cada sensação vivida, cada lembrança, cada segredo em mim. Eu sou completamente dela agora.

As batidas na porta não encontram resposta.

Dentro do apartamento, não vão encontrar nada. Apenas manchas de sangue no carpete.

6 comentários:

Marina Ayra disse...

macabrééééééérrimo mas muito bom.
total i see dead people
adorei

Tânia Tiburzio (TT) disse...

Muito bom! Adorei!

Camila disse...

Maravilha de conto! Na verdade a gente não quer que ela venha... Mas já que mais cedo ou mais tarde virá, dá pra ser 'ele'? Moreno, alto... Só uma sugestão...

Unknown disse...

Adorei isto... Adorei!!!!!!

Ana Marques disse...

E a cura tornou-se um calvário.

quando se deseja morrer, o que se faz?

:)

Provavelmente a alucinação que crescia com ele fazia mais sentido do que todo o resto da vida junto.


beijo beijo

Ana

Ana Marques disse...
Este comentário foi removido pelo autor.

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