quarta-feira, maio 20, 2009

O Legado

"Now that you are gone casting shadows from the past /You and all the memories will last"
Kamelot – "Don't you cry"

Com um movimento leve e doce, Cláudia abriu a porta. As forças lhe faltaram e, por um momento, ela teve que se apoiar no batente para não cair. A casa estava vazia demais sem ele.

Se alguém visse aquela figura frágil caminhando pelo corredor levando nas mãos uma caixa de papelão, tomaria-a por uma assombração, sofregamente dirigindo-se para a ala norte da construção. As lembranças estavam por toda parte: nos quadros na parede, na poltrona em frente à lareira e até mesmo no doce aroma de tabaco que já se dissipava no ar.

Trêmula, estancou em frente a uma porta trancada, no final do corredor. Hesitou. Sabia que o que viera buscar estava do outro lado, mas também sabia que não suportaria entrar no estúdio outra vez. Pensou por um momento, respirou fundo e, por fim, girou a maçaneta.

Ali estavam elas. Todas as fotos de Sérgio, cobrindo painéis, paredes, móveis. Para ele, paixão, hobby, compulsão. Para ela, seu último legado, tudo o que ele lhe deixou. Não podia deixá-las ali.

Cláudia aproximou-se lentamente do primeiro painel. Retirou o alfinete que prendia a primeira foto e colocou-a na caixa, sentindo seu coração despedaçar-se. Temia não conseguir terminar.

Colocando as fotos, uma por uma, na caixa, ela foi percebendo o porquê da sua beleza inquietante. Elas transpiravam vida, eram naturais. Sérgio nunca pedira para bater uma foto, tampouco que lhe fizessem pose, por isso elas continham sentimentos, expressões, alegrias, tristezas, decepções. “Uma foto é instante de uma vida inteira eternizado em um pedaço de papel.” – era o que ele dizia. E era o que se sentia ao contemplar sua obra.

Ele fotografara tudo: festas de família, passeios, viagens, visitas. Nunca fora muito impulsivo, mas vivera intensamente todos os momentos da sua vida, sempre com a sua câmera a tiracolo, registrando tudo. Quando lhe perguntaram porque ele fazia isso, ele respondeu apenas: “A vida é fugaz”. Mas que diabos! Por que ele tinha de estar certo? Por quê?

As lágrimas de Cláudia caíram sobre a caixa, juntando-se ao seu passado, às suas lembranças. Ela nunca se perdoou por tê-lo deixado ir sozinho para a casa da mãe naquela noite. Ela ainda se lembra do telefonema da polícia, do bombeiro entregando-lhe a câmera de Sérgio com a objetiva quebrada, que ela ainda guarda consigo. As fotos vão se somando na caixa. Tantos rostos, tantos lugares, não apenas uma, mas muitas vidas congeladas ali, em breves instantes. Pequenas partes de um todo muito maior.

“Vidas passam, lembranças se perdem, mas são os ideais que constróem o mundo. Estes não morrem jamais!

O estúdio vai ficando vazio, irreconhecível, triste. Ela sabe que não voltará mais lá, assim como sabe que sua vida nunca mais será a mesma.

Cláudia colocou a última foto na caixa e ergueu-a nas mãos. Não havia mais nada a fazer ali. Antes, porém, de fechar a porta atrás de si, ela colocou a caixa no chão, tirou da bolsa a câmera de Sérgio e bateu uma foto do estúdio vazio.

“Ideais não morrem”, pensou, trancando a porta.

3 comentários:

Marina Ayra disse...

Nossa Paulo, que forte isso!
O que te deu pra escrever uma coisa assim?
Fiquei com orgulho de ser sua amiga e com medo também hahahaha

Lindo demais
Um beijão!

Camila disse...

Que palavras seriam suficientemente fortes para descrever o que se sente ao ler algo assim? Um contraste perfeito entre a agudez da dor e a sutileza do amor. As palavras formam um jogo imagético tão perfeito que tornam possível visualizar as fotografias, a dor, o cômodo vazio, o último registro. Lindo. Tudo.

Unknown disse...

Paulo...

Amei o final...em que ela tira a foto do estúdio vazio. Pressumo este vazio que ele deixou. O que mais gosto no conto é que ele não acaba e fica na gente de alguma forma.

@pattricialeite

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