quinta-feira, novembro 12, 2009

Consumação


"E onde houver ofensa, deixai cair o grande machado"
William Shakespeare

Vanessa penteava os longos cabelos negros em frente ao espelho. Seus movimentos delicados contrastavam com a velocidade dos seus pensamentos. Essa seria a noite mais importante da sua vida. Era seu vigésimo primeiro aniversário, e Juliano cumpriria a promessa que fizera a ela. Passara o dia em preparativos para recebê-lo, vedando as janelas da ensolarada cobertura com grossas cortinas negras e iluminando o espaço com velas. O cheiro adocicado do incenso dominava, hipnótico, o ar.

Juliano despertou em arroubos ardentes de ansiedade. O dia havia chegado. O seu dia. Após dezoito anos de espera, Vanessa seria sua para sempre. Não que isso fosse muito. Afinal, viver quinhentos anos fazia o tempo voar. Na verdade, ela quebrara o tédio da imortalidade com a sua existência frágil. Uma exótica distração. Em seu descanso, sonhara com ela, figura etérea, o sangue fluindo vermelho-vivo através da artéria aberta no pescoço lívido, escorrendo por sua língua e boca, alimentando-o com vida, volúpia e sabor. O sabor da vingança.

Quando entrou no apartamento, tarde da noite, Vanessa o esperava vestindo apenas uma insinuante camisola de seda preta, que deixava entrever praias brancas de pele macia. Os olhos dela transbordavam de obsessão castanha. O mesmo olhar com que, aos quinze anos de idade, ela o fizera jurar que a transformaria. Ser como ele. Permitira que ela vivesse apenas para isso. Arrancara-a dos braços mortos dos pais, ainda bebê, e a preparara para que ela fosse a sua Nêmesis, a vingança encarnada, seu flagelo. Agora, faltava pouco. O ritual se estenderia muito além da proteção da noite e, ao final do terceiro dia, ela renasceria sedenta e bela. Ganharia, como presente, uma presa especial para aplacar o seu desejo de sangue. Seu próprio tio Jonas, o rosto que foi gravado a fogo na mente de Juliano, o maldito padre que destruíra seu irmão Samir. Padre Jonas, que acreditava que a sobrinha fora morta junto com os pais, descobriria então o real paradeiro dela, e teria sua última e dolorosa decepção. Vanessa o tirou de seu transe, conduzindo-o pela mão em direção à cama, que havia sido deslocada para o centro do recinto. Saindo de cada um dos pés de sua estrutura de metal, grossas cordas repousavam emboladas sobre o colchão.

– Para que são? – Juliano perguntou, abafando o riso.

– Para que você me amarre – ela respondeu, dando de ombros – Sei que não tem a menor necessidade, mas, nos meus sonhos, é assim que acontece...

– Como quiser – ele aquiesceu, beijando-a com paixão.

O beijo de Juliano fez com que ela lembrasse de cada abraço, beijo e carinho que recebera dele desde a infância. Imagens delirantes assaltaram sua mente, o rosto dele misturando-se ao de seus pais. Deixou que ele explorasse seu corpo com a língua gélida, enquanto a despia devagar. Rolou com ele na cama, lutando para o libertar de suas roupas. Braços, peito, costas e pernas revelaram-se, pouco a pouco em sua palidez doentia. Movia-se, provocante, exibindo o próprio pescoço em uma dança silenciosa. Podia ver o desejo ardente nos olhos dele, agora vermelhos. Seus lábios entreabertos retraíram-se em um esgar sequioso. O momento estava chegando.

Ele a amarrou com firmeza, braços e pernas formando um X na cama. Indefesa, ela fechou os olhos e esperou pela mordida. Assassino! Isso é o que ele era! Ela era pequena demais, mas a imagem nunca saíra de seus sonhos. Ele matara seus pais a sangue frio, apenas para tomá-la para si. A mordida veio cruel, dilacerando seu pescoço. A dor fria espalhou-se, e ela teve que usar toda a repulsa que sentia por ele para não desmaiar. Sentiu-o sugando seu sangue com voracidade, e isso trouxe novo fôlego ao seu ódio. Concentrando-se, utilizou toda a força que restava em seu corpo para puxar as cordas atadas aos seus braços, na esperança de que o tempo transcorrido até então fosse o bastante. Uma a uma, as cortinas soltaram-se do teto e despencaram para o chão, abrindo caminho para que os raios alaranjados do sol nascente invadissem o apartamento. Juliano gritou em agonia, seu corpo incendiando-se como o tecido negro das cortinas ao encontrar as velas.

O calor das chamas que a consumiam era libertador. A dor, reconfortante. Ela sorriu, satisfeita, enquanto contemplava o último amanhecer de sua vida.

16 comentários:

Unknown disse...

Belo texto e não quero essa Vanessa perto de mim... Nunca!!! PQP!!!

Teca Camargo disse...

Muito bom!!!
Estou virando sua fa!! :D

Paulo Fodra disse...

Que legal mesmo, Teca! Nunca imaginei que você estivesse me lendo... Beijos!

Paulo Fodra disse...

Cesinha, meu amigo! Todo homem já conheceu uma Vanessa, escondida logo ali, dentro de uma mulher ferida... Eu morro de medo!

Ruiva disse...

Ainda assim, fora transformada. Mas sua vingança foi muito bem feita.

Beijocas!

Clubinho do Papel disse...

Ui, esquentou aqui. Adorei o texto!

Teca Camargo disse...

eh que nao tem mto o que fazer aqui na Libia!!! rsrsrsrsrsrs
brincadeiras a parte.... estou lendo ha mto ... gosto do jeito que vc escreve!!! Parabens!!
Beijos

Lohan Lage disse...

Parabéns, Paulo, excelente texto!
Na era dos Crepúsculos e das Luas Novas, rs, sou mais o Nêmesis, rs.
Mulheres sabem se vingar como ngm...
Abraços!

Blog da Bruna disse...

Paulo, eu não sou muito de mistérios e vampiros, mas esse teu conto me pegou demais desprevenida: sensualissimo apesarda frieza da vingança.
Talvéz porquê - umavez, só uma vez - já me vinguei na cama...

Daniela Slindvain disse...

Paulo,

Simplesmente adorei o seu texto! Vou virar sua fã, hein? ;)

Beijos,
Dani

Ana Marques disse...

A maneira como a história se desenrola me faz esperar por um elemento surpresa.
Eu chego a imaginar que o tio viria matar o vampiro com o consentimento da sobrinha, mas... a forma como construiu é psicologicamente mais coerente, já que provavelmente a garota se sentiria cúmplice na morte dos pais, ao mesmo tempo que desejava matar o culpado-mor.

:)

Muito boa.

bjs

Tiago Moralles disse...

Frio, pesado e denso. Do jeito que eu gosto.
Bom.

Leila Dayane disse...

Marcando presença e repetindo: Adorooooooooooooo este conto! Adoroooooooooooooooooo!

finish disse...

o q salta aos meus olhos, são os detalhes...perigosíssimos em seus textos..rs! eles anunciam sempre um final interessantíssimo.
parabéns, moço.
Ana Ferrero

Fernando Ramos disse...

Eu usaria genial, mas como o adjetivo virou um puta clichê pra qualquer coisinha escrita na internet, incorreria em reduzir teu texto. Portanto direi que achei do caralho mesmo!

E como falei contigo ao msn, o clima que crias, fazendo parcer mais um vampiresco teen, pra revelar o crápula que ele era - até porque essa coisa de vampiro bonzinho é chato demais! -, foi uma boa sacada, juntamete com as amarras da cama, claro.

Parabéns, meu querido! Parabéns!

Larissa disse...

Sou uma louca apaixonada por vampiros, aqueles que não brilham no sol, claro.
O texto é fascinante.
Parece que posso sentir o doce sabor da vingança.

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