sexta-feira, setembro 18, 2009

Coisas Simples

“Everytime the rain comes calling
I can't stop myself from falling
Into the darkness - into the madness”
Primal Fear – “Everytime it Rains”

Saltei por sobre a cerca branca baixa que delimitava o jardim dos fundos da casa com um movimento preciso, utilizando apenas uma das mãos como apoio. As poucas coisas que me trazem prazer são, de fato, muito simples.

Pousei de maneira suave, com os dois pés perfeitamente equilibrados sobre o imenso tapete verde que cobria toda a distância até a casa. A grama estava um pouco mais alta do que deveria, mas é assim que gosto dela. Fechei os olhos e respirei fundo, deixando aquele cheiro fresco delicioso invadir meus pensamentos. Todos os pêlos do meu corpo se arrepiaram ao sentir no vento frio que explodiu contra o meu peito o presságio de chuva. Meus lábios se abriram em um sorriso involuntário.

Caminhei pelo gramado até o anjo de pedra que se erguia solitário no centro do terreno. Haviam sombras escuras em seu rosto, que parecia triste hoje, misturado ao cinza chumbo do céu. Percorri com a mão esquerda as suas formas familiares, sentindo a textura da pedra antiga em meus dedos enquanto contemplava a imensa casa branca que se erguia à minha frente. Ela brilhava de um jeito estranho na luz agourenta que vazava por entre as nuvens zangadas, cada uma das muitas janelas era como um espelho perfeito do espetáculo da natureza que se formava. Todas as delicadas sensações condensaram-se em um fraco torpor de felicidade, que partiu do meu estômago e logo se alastrou para o restante do corpo. Meus pensamentos foram dominados pela ânsia violenta de intensificar e prolongar ao máximo esse sentimento, antes que ele pudesse desaparecer por completo.

A chuva fria começou a cair, intensa, desenhando pequenos riachos sobre a minha longa capa de chuva amarela. Mesmo oculto sob as sombras do capuz, meu rosto foi açoitado por milhares de gotas geladas que escorriam até a minha boca, e eu pude sentir na água o gosto amargo da condenação. Permaneci imóvel, paciente, esperando que a chuva pudesse levar embora todos os meus sentidos e me libertar da escravidão dos meus desejos. Mas a chuva passou, e nada aconteceu.

Com uma alegria inocente, quase infantil, me aproximei da entrada dos fundos da casa, que ficava sobre uma elegante plataforma de madeira avarandada. Subi com cuidado pela pequena escada de quatro degraus, evitando com uma agilidade inconsciente o terceiro deles, que rangia alto demais. Do lado esquerdo da porta, havia uma janela alta de vestíbulo, a única ali com uma tela de proteção. Corri a mão pela parte de baixo da tela, até alcançar a chave. Destranquei a porta e entrei, fechando-a com cuidado atrás de mim.

...

Felicidade extrema. Era o que eu sentia ao sair da casa. Tranquei novamente a porta dos fundos, recolocando a chave em seu esconderijo, e desci para o jardim. Fui recebido novamente pelo cheiro doce da grama alta molhada. Meus pés faziam um som agradável ao chapinhar pelo gramado encharcado. O vento gelado assobiava uma canção melancólica em meus ouvidos e, antes que eu pudesse chegar até a cerca, a chuva recomeçou. Como da primeira vez, deixei que ela me atingisse em cheio. Mas os pequenos riachos sobre o tecido amarelo impermeável da minha capa de chuva estavam agora tingidos de vermelho vivo. A chuva lavou todo o sangue, e então parou.

Saltei por sobre a cerca branca sem o menor sinal de cansaço. As poucas coisas que me trazem trazem prazer são, de fato, muito simples.

6 comentários:

Mariana Pellegrini disse...

Mais um dos bons ;]

Camila disse...

Nossa... Adorei! Gostei do olhar subjetivo sobre a simplicidade e tudo que esse termo pode ter de oculto e ambíguo. Minúcias nos traços psicológicos e na ambientação da cena; concisão no foco central. A tensão empregada no desenrolar dos fatos, torna-se mais importante que o ato em si. Insinua, mas não revela.
Ahhh, dá pra ficar uma hora comentando seus contos... Mas não vou ser tão chata, prometo!
Perfeito, como sempre.

Lissa disse...

é pra falar? achei legal. mas acho que tem adjetivos demais e umas metáforas supérfluas. a idéia é boa, mas acho que você precisa limpar, despir de tanto floreio literário. acho q se você fizesse uma coisa um tantinho mais "crua" ficaria melhor, além de contribuir pra vc dar mais um passo em direção ao teu próprio estilo. você tem a cena na cabeça, vc sabe que hora do dia era, que temperatura fazia, se o sapato do cara apertava ou não, e tem o desafio de transmitir tudo isso de um modo indireto. enfim, achei legal, mas podia ser melhor. e tb acho que anjo de pedra é um puta clichê entediante. prontofalei.

Lissa disse...

tb tem umas ordens indiretas das frases que dificultam a leitura injustificadamente. ouviram do ipiranga as margens pláááááácidas

mauri disse...

cara.. sinceramente.. é difícil encontrar escritos dessa qualidade, deu até pra sentir a chuva! E ficou perfeita a maneira como retratou as coisas simples e as sensações, deixando um quê de mistério em meio aos fatos. Não sei porque, esse texto me fez lembrar de minha infância, quando sonhava com tempestades que nunca caiam...
na minha opinião o tal "floreio literário" não podia ser dispensado não, se não fosse por isso, a sensação não seria exata, e o fato seria só um fato como qualquer outro. Mas criando uma atmosfera única se faz um conto perfeito! Mas como já escrevi um monte e não cheguei a lugar nenhum, resumindo: arrasou!
Obs: É muito bom passear aqui pelo mundo dos grandes, apesar de me sentir ainda mais amador do que já sou, aprendo muita coisa. Se tiver paciencia pra ler os meus rabiscos tbm, fique a vontade, o porão é seu :P www.pgnotfound.blogspot.com

Raquel Koch disse...

Senti que você conduziu de maneira acertiva o leitor. Nas descrições que remetiam às sensações e aos detalhes do local, você usou a seu favor, não deixando margem para dúvidas, conduzindo o que pensávamos.
Mas isso não impediu que você estimulasse a imaginação de quem lê no momento em que, se continuassem as descrições detalhadas poderia ficar chato. Ou seja, o suspense acontece no momento mais adequado dentro da estrutura textual.
Gostei de verdade.

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