domingo, julho 25, 2010

Sem asas

Foto: Alejandro Hernandez

Ângelo,

Ao acordar, encontrei o teu recado escrito a sangue em meu espelho. “Eu odeio você!”. Só então percebi o corte recente em meu antebraço. Ardia, é verdade, mas o contraste das letras vermelho-vivo sobre a prata me entorpeceu. A caligrafia era inconfundível, mesmo traçada a dedo. Imaginei teu braço pesado a segurar a lâmina contra a minha pele, meus pelos arrepiando-se de instantâneo. Tua mão a rasgar-me a carne em fenda torta, fina e funda. A ferida latejando a cada bafejar de tua respiração acelerada. Tudo enquanto eu dormia. Ah, como eu queria ter sentido o teu dedo nodoso violar os meus tecidos! Tive você sob a minha pele, encharcando-se em meu sangue, e nem pude saboreá-lo em mim. Ao menos, sei que sentiu tanto tesão quanto eu estou sentindo agora. O travesseiro está manchado, então você esfregou meu sangue no teu rosto. Sei que isso te excita – fluidos, perversão, tudo o que é proibido –, enquanto meu delírio é a tua existência, as tuas marcas em meu corpo. Queria ser capaz de fazê-las eu mesmo, decretar minha independência de você. Mas isso me é impossível, pelo mesmo motivo que me impede de olhar bem no fundo dos teus olhos cinzentos e gritar tudo o que sinto. Não. Tenho que escrever. Sempre faltou-me a tua coragem. Enquanto eu despejava um caminhão de entulho sobre meus desejos, você buscava os teus à luz do dia. Nas profundezas desse aterro, descobri-me a desejar-te. A violência que o teu espírito pedia era o meu combustível, minha válvula de escape. Eu queimava. E a cada piranha que você retalhava, meu amor crescia mais e mais. Tantas vezes te visitei. Era isso que te virava do avesso, e fazia o teu ódio por mim aumentar. Foi por isso que você começou a fugir de mim e da fúria que eu te despertava. Mas saiba, meu amor, que não há mais saída. Vivo muito bem dos sinais da tua presença, e as tuas tentativas de ferir-me é que me fazem feliz de verdade.

Teu, em cada célula do corpo,
Guilherme
...

Ângelo despedaçou a carta e atirou os pedaços para o ar. Apesar do buraco em sua memória, era evidente que Guilherme passara por ali. O espelho fora limpo com afinco. O cinzeiro, sob o qual encontrara a carta, também. O quarto estava arrumado demais, não havia um único objeto fora de lugar. Ângelo bufava em fúria, os músculos do pescoço completamente contraídos. Como era possível que Guilherme vivesse em meio à tanta ordem, enquanto ele não conseguia ao menos organizar seus próprios pensamentos, sua memória? Arremessou o cinzeiro com força contra o espelho, que explodiu enquanto dexiava escapar um urro de desespero e frustração. Migalhas de sonhos prateados choveram por todo o piso. Nu, sua aparência era tudo menos humana. Caminhou até a sacada com os pés crivados de cacos de vidro, deixando um rastro de pegadas sangrentas. Respirou fundo. Estava cansado de viver assim, estilhaçado como o espelho. Não bastassem as lacunas em sua memória, ainda tinha aquele maníaco perseguindo-o. Curioso é que ele nem lembrava mais em qual momento de sua vida deixara que Guilherme se aproximasse. “Não há mais saída”, sentenciava a carta. Não mesmo, Guilherme? Sempre tem! Quer ver? Sem aviso, Ângelo saltou o parapeito, como se fosse voar.

A queda silenciosa durou quinze andares e terminou, com um baque surdo, em uma pilha moribunda de carne e ossos quebrados. Por instantes, tudo fez sentido, e então se desfez. Reunidos, Ângelo e Guilherme encontraram-se um no outro, ainda que apenas para uma estranha despedida.

      Ângelo, meu amor, você me fez feliz como ninguém...
      Ah, Guilherme... até que enfim, me livrei de você! 

terça-feira, julho 13, 2010

O rosto


“As pessoas veem apenas o que elas estão preparadas para ver.” 
Ralph Waldo Emerson 

Mariana apertou o passo quando ouviu o sinal soar. Seus pequenos pés deslizaram com agilidade sobre o piso de borracha preta, e ela projetou-se para dentro do vagão mais próximo apenas um segundo antes da porta automática se fechar. Equilibrou o corpo em um movimento gracioso, ainda apertando contra o peito a pasta de couro e o avental branco dobrado, como se fossem tesouros. Embora levasse uma grande bolsa sobre o ombro esquerdo, era com esse braço que se defendia dos solavancos do metrô que partia.

Quando a velocidade do trem estabilizou, ela ajeitou a franja ruiva comprida, revelando seu olhar concentrado em busca de um assento vago. Encontrou-o junto à uma das janelas do lado oposto. Acomodou-se e começou a observar as pessoas, todas com a mesma pressa irracional. Gente enlatada – pensou, admirando aquele mar de cabeças oscilantes – abusando do anonimato ilusório das multidões enquanto se esforçavam ao máximo para não enxergar o outro. E tratava de devolver-lhes a identidade, um a um, estudando seus pormenores, lendo nas entrelinhas dos gestos. O que não conseguia captar, inventava. Era uma espécie de jogo que fazia para suportar o tempo que passava ali. Linha Verde, Linha Azul, depois Linha Vermelha. [Seis dias por semana, três vezes por dia, Doutora]. Se fizesse as contas, perceberia que passava mais tempo no metrô do que em sua própria casa.

A composição mergulhou veloz em direção ao subterrâneo e ela voltou-se para a janela. Lá fora, na escuridão pulsante do túnel, as sombras dos pilares e equipamentos passavam tão depressa, que mal podia percebê-las. Era isso que a fascinava. O túnel funcionava como uma janela para dentro do seu eu. Era somente contra aquela tela escura que todas as peças de sua vida pareciam encaixar-se. Gostava tanto de brincar nesse plano subjetivo que, por vezes, se esquecia de onde estava e do que se passava ao redor. E o tempo se perdia com ela, hipnotizado pelas mudanças de cor daqueles olhos intensos.

Sempre que se apanhava assim, tão distraída, um calafrio violento a empurrava de volta à realidade. Uma lembrança sombria. Olhou em volta, nada anormal. O vagão prosseguia imerso em seu microcosmo: nunca igual, nem tão diferente assim. O oposto daquela tarde, dez anos atrás, na qual um intrigante rosto surgiu dentre suas ideias, encarando-a com seus profundos olhos negros. Jamais esqueceria aquele olhar urgente, face contraída. Na verdade, recordava-se daquele dia em cada detalhe.

Deduziu, pelo reflexo, que a dona daquele rosto tão sinistro estava parada junto à porta. Curiosa, voltou-se para observá-la. Não a encontrou. Através da porta que se fechava, vislumbrou expressões aterrorizadas na plataforma. O que estava acontecendo? O trem partiu, e ela percebeu que não havia mais ninguém no vagão além do homem sentado ao seu lado. Sufocou o impulso de sair correndo ao perceber o reflexo metálico que corria sobre o jeans de suas calças. Na mão trêmula, o sujeito tinha uma tesoura. Segurava-a com tanta força, que as juntas dos dedos estavam esbranquiçadas. Ela sentia o hálito podre soprado em seu pescoço, o odor azedo de dias sem banho. Não arriscou olhar direto para ele, pois tinha medo de que o contato visual rompesse o frágil equilíbrio da situação. Pelo canto do olho, descobriu que ele a estudava, abrindo e fechando a tesoura bem devagar. Quem sabe o que estivera pensando? Naquele hiato de gente entre as duas estações, o tempo parou. Os minutos desdobraram-se em horas de pânico e desespero. A próxima estação parecia não chegar nunca. Então ela fez a única coisa sensata a fazer. Fechou os olhos e começou a contar para si – um, dois, três, quatro –, para obrigar o tempo a passar. Onze, doze, treze – fizera isso tantas vezes quando criança – dezessete, dezoito, dezenove – uma pequena fuga que sempre enfurecia sua mãe – vinte-e-três, vinte-e-quatro, vinte-e-cinco. O trem parou. Chegara à estação? Esperava que sim. Ela abriu os olhos e o homem não estava mais lá. Corria alucinado pela plataforma, com vários seguranças em seu encalço. O vagão encheu novamente, e ela se deu conta de que ainda contava – trinta-e-oito, trinta-e-nove... 

Escapara por pouco, soube mais tarde. O homem era um maníaco procurado pela polícia e dera muito trabalho naquele dia, antes de ser capturado. Apesar de todo o perigo vivido, o que deixava o seu coração inquieto e, por vezes, roubava seu sono, ainda era o rosto feminino no túnel. Algo nele a atraía na mesma medida em que a apavorava. Quem seria? Odiava charadas sem resposta, por isso essa questão subia à superfície dos seus pensamentos com freqüência. A hipótese mais provável era que o seu subconsciente reconhecera a mulher de alguma de suas memórias passadas, provocando aquela estranha sensação.

Nesses últimos anos trabalhando no hospital, várias vezes pensou tê-la visto de relance. Como acontece com a maioria dos vultos que nos pegam pelo canto dos olhos, ao virar-se, nada encontrava. Acontecia sempre durante os dias mais tensos e, em meio à correria e à confusão das emergências, ela não conseguia parar para averiguar melhor. Acabara por atribuir essa sensação às descargas emocionais do trabalho. [Adrenalina, Doutora. Uma bomba química que deixa o seu corpo pronto para reagir em condições extremas. Às vezes faz enxergar de menos, às vezes, demais. Só isso.] Porém, nunca se convencera. Enquanto ponderava sobre o assunto, as peças de que dispunha foram surgindo em sua tela mágica. Tirando a tensão da jogada, haveria mais características comuns? Dessa vez, concentrou-se nos mais insignificantes detalhes: cheiros, gostos, sensações. O trem assobiou agudo nos trilhos, e o ruído ecoou, soprando-lhe a direção em que deveria olhar. Sons! Com a ansiedade a revirar-lhe o estômago, Mariana começou a relembrar os sons que cercavam o aparecimento daquela misteriosa figura: o arrastar de macas, gritos de médicos e enfermeiras, a melodia aguda e constante do monitor cardíaco e mais nada. [Parada cardíaca! Rápido, doutora, consiga ajuda!] Ela sabia muito bem o que vinha depois. A visão turva, afunilando-se sobre o paciente. O mundo afastando-se como se visto através da penumbra de um longo túnel. O rubor intenso em seu rosto. O sangue pulsando violento em sua garganta, lembrando a cada instante que o tempo passa, inexorável, sem que o coração do outro reaja. E o monitor a repetir, incessante, em sua nota única e cruel: morreu morreu morreu morreu morreu morreu morreu morreu morreu.

A descoberta fez com que suas pernas amolecessem, mas seu instinto profissional, mais do que depressa, chamou-a à razão. [E como você explica, Doutora – desse seu ponto de vista místico aí – a primeira vez em que esse rosto te assombrou?] Nesse mesmo instante, o aviso do fechamento da porta do metrô fez o coração disparar, trazendo-a de volta à realidade. [O tempo se esgota sempre, em algum lugar.] Pela primeira vez, percebeu-o como um arremedo do monitor cardíaco. Ergueu os olhos para a plataforma e lá estava ela, a mulher misteriosa, parada no meio da multidão. Sem pestanejar, Mariana arremessou-se para fora do vagão. Precisava resolver de vez aquela história, antes que ficasse maluca. A porta fechou-se, tentando impedi-la de sair. Mas ela foi mais rápida. Soltou-se com um puxão decidido, colocando-se em segurança do lado de fora. Frustrada, constatou que a mulher se fora. Um baque surdo atrás de si fez a multidão gritar. Ao virar-se, percebeu que o vagão estava vazio, exceto pelo homem de aparência insana com o rosto grudado na janela. Frenético, batia o punho ensanguentado contra o vidro tentando quebrá-lo. Na outra mão, trazia um grande caco de vidro pontudo.

Mariana arfou, sentindo o sangue gelar em suas veias enquanto o trem partia. Não pela percepção do que se livrara – essa só viria bem depois. Atrás do lunático, sentada no lugar em que ela mesma estivera, vira uma conhecida figura de mulher.

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