sexta-feira, agosto 06, 2010
Mudanças...
Abraços,
Paulo Fodra
domingo, julho 25, 2010
Sem asas
Foto: Alejandro Hernandez |
terça-feira, julho 13, 2010
O rosto
Mariana apertou o passo quando ouviu o sinal soar. Seus pequenos pés deslizaram com agilidade sobre o piso de borracha preta, e ela projetou-se para dentro do vagão mais próximo apenas um segundo antes da porta automática se fechar. Equilibrou o corpo em um movimento gracioso, ainda apertando contra o peito a pasta de couro e o avental branco dobrado, como se fossem tesouros. Embora levasse uma grande bolsa sobre o ombro esquerdo, era com esse braço que se defendia dos solavancos do metrô que partia.
Quando a velocidade do trem estabilizou, ela ajeitou a franja ruiva comprida, revelando seu olhar concentrado em busca de um assento vago. Encontrou-o junto à uma das janelas do lado oposto. Acomodou-se e começou a observar as pessoas, todas com a mesma pressa irracional. Gente enlatada – pensou, admirando aquele mar de cabeças oscilantes – abusando do anonimato ilusório das multidões enquanto se esforçavam ao máximo para não enxergar o outro. E tratava de devolver-lhes a identidade, um a um, estudando seus pormenores, lendo nas entrelinhas dos gestos. O que não conseguia captar, inventava. Era uma espécie de jogo que fazia para suportar o tempo que passava ali. Linha Verde, Linha Azul, depois Linha Vermelha. [Seis dias por semana, três vezes por dia, Doutora]. Se fizesse as contas, perceberia que passava mais tempo no metrô do que em sua própria casa.
A composição mergulhou veloz em direção ao subterrâneo e ela voltou-se para a janela. Lá fora, na escuridão pulsante do túnel, as sombras dos pilares e equipamentos passavam tão depressa, que mal podia percebê-las. Era isso que a fascinava. O túnel funcionava como uma janela para dentro do seu eu. Era somente contra aquela tela escura que todas as peças de sua vida pareciam encaixar-se. Gostava tanto de brincar nesse plano subjetivo que, por vezes, se esquecia de onde estava e do que se passava ao redor. E o tempo se perdia com ela, hipnotizado pelas mudanças de cor daqueles olhos intensos.
Sempre que se apanhava assim, tão distraída, um calafrio violento a empurrava de volta à realidade. Uma lembrança sombria. Olhou em volta, nada anormal. O vagão prosseguia imerso em seu microcosmo: nunca igual, nem tão diferente assim. O oposto daquela tarde, dez anos atrás, na qual um intrigante rosto surgiu dentre suas ideias, encarando-a com seus profundos olhos negros. Jamais esqueceria aquele olhar urgente, face contraída. Na verdade, recordava-se daquele dia em cada detalhe.
Deduziu, pelo reflexo, que a dona daquele rosto tão sinistro estava parada junto à porta. Curiosa, voltou-se para observá-la. Não a encontrou. Através da porta que se fechava, vislumbrou expressões aterrorizadas na plataforma. O que estava acontecendo? O trem partiu, e ela percebeu que não havia mais ninguém no vagão além do homem sentado ao seu lado. Sufocou o impulso de sair correndo ao perceber o reflexo metálico que corria sobre o jeans de suas calças. Na mão trêmula, o sujeito tinha uma tesoura. Segurava-a com tanta força, que as juntas dos dedos estavam esbranquiçadas. Ela sentia o hálito podre soprado em seu pescoço, o odor azedo de dias sem banho. Não arriscou olhar direto para ele, pois tinha medo de que o contato visual rompesse o frágil equilíbrio da situação. Pelo canto do olho, descobriu que ele a estudava, abrindo e fechando a tesoura bem devagar. Quem sabe o que estivera pensando? Naquele hiato de gente entre as duas estações, o tempo parou. Os minutos desdobraram-se em horas de pânico e desespero. A próxima estação parecia não chegar nunca. Então ela fez a única coisa sensata a fazer. Fechou os olhos e começou a contar para si – um, dois, três, quatro –, para obrigar o tempo a passar. Onze, doze, treze – fizera isso tantas vezes quando criança – dezessete, dezoito, dezenove – uma pequena fuga que sempre enfurecia sua mãe – vinte-e-três, vinte-e-quatro, vinte-e-cinco. O trem parou. Chegara à estação? Esperava que sim. Ela abriu os olhos e o homem não estava mais lá. Corria alucinado pela plataforma, com vários seguranças em seu encalço. O vagão encheu novamente, e ela se deu conta de que ainda contava – trinta-e-oito, trinta-e-nove...
Escapara por pouco, soube mais tarde. O homem era um maníaco procurado pela polícia e dera muito trabalho naquele dia, antes de ser capturado. Apesar de todo o perigo vivido, o que deixava o seu coração inquieto e, por vezes, roubava seu sono, ainda era o rosto feminino no túnel. Algo nele a atraía na mesma medida em que a apavorava. Quem seria? Odiava charadas sem resposta, por isso essa questão subia à superfície dos seus pensamentos com freqüência. A hipótese mais provável era que o seu subconsciente reconhecera a mulher de alguma de suas memórias passadas, provocando aquela estranha sensação.
Nesses últimos anos trabalhando no hospital, várias vezes pensou tê-la visto de relance. Como acontece com a maioria dos vultos que nos pegam pelo canto dos olhos, ao virar-se, nada encontrava. Acontecia sempre durante os dias mais tensos e, em meio à correria e à confusão das emergências, ela não conseguia parar para averiguar melhor. Acabara por atribuir essa sensação às descargas emocionais do trabalho. [Adrenalina, Doutora. Uma bomba química que deixa o seu corpo pronto para reagir em condições extremas. Às vezes faz enxergar de menos, às vezes, demais. Só isso.] Porém, nunca se convencera. Enquanto ponderava sobre o assunto, as peças de que dispunha foram surgindo em sua tela mágica. Tirando a tensão da jogada, haveria mais características comuns? Dessa vez, concentrou-se nos mais insignificantes detalhes: cheiros, gostos, sensações. O trem assobiou agudo nos trilhos, e o ruído ecoou, soprando-lhe a direção em que deveria olhar. Sons! Com a ansiedade a revirar-lhe o estômago, Mariana começou a relembrar os sons que cercavam o aparecimento daquela misteriosa figura: o arrastar de macas, gritos de médicos e enfermeiras, a melodia aguda e constante do monitor cardíaco e mais nada. [Parada cardíaca! Rápido, doutora, consiga ajuda!] Ela sabia muito bem o que vinha depois. A visão turva, afunilando-se sobre o paciente. O mundo afastando-se como se visto através da penumbra de um longo túnel. O rubor intenso em seu rosto. O sangue pulsando violento em sua garganta, lembrando a cada instante que o tempo passa, inexorável, sem que o coração do outro reaja. E o monitor a repetir, incessante, em sua nota única e cruel: morreu morreu morreu morreu morreu morreu morreu morreu morreu.
A descoberta fez com que suas pernas amolecessem, mas seu instinto profissional, mais do que depressa, chamou-a à razão. [E como você explica, Doutora – desse seu ponto de vista místico aí – a primeira vez em que esse rosto te assombrou?] Nesse mesmo instante, o aviso do fechamento da porta do metrô fez o coração disparar, trazendo-a de volta à realidade. [O tempo se esgota sempre, em algum lugar.] Pela primeira vez, percebeu-o como um arremedo do monitor cardíaco. Ergueu os olhos para a plataforma e lá estava ela, a mulher misteriosa, parada no meio da multidão. Sem pestanejar, Mariana arremessou-se para fora do vagão. Precisava resolver de vez aquela história, antes que ficasse maluca. A porta fechou-se, tentando impedi-la de sair. Mas ela foi mais rápida. Soltou-se com um puxão decidido, colocando-se em segurança do lado de fora. Frustrada, constatou que a mulher se fora. Um baque surdo atrás de si fez a multidão gritar. Ao virar-se, percebeu que o vagão estava vazio, exceto pelo homem de aparência insana com o rosto grudado na janela. Frenético, batia o punho ensanguentado contra o vidro tentando quebrá-lo. Na outra mão, trazia um grande caco de vidro pontudo.
Mariana arfou, sentindo o sangue gelar em suas veias enquanto o trem partia. Não pela percepção do que se livrara – essa só viria bem depois. Atrás do lunático, sentada no lugar em que ela mesma estivera, vira uma conhecida figura de mulher.
quinta-feira, junho 24, 2010
Capítulo IV – Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada...
De repente, vi-me a repetir conhecidos gestos. Dobrar roupas, juntar livros e objetos, despir a casa dos sinais de minha presença. Fechei a mala com o estômago a dar cambalhotas de ansiedade, pois cortava o cordão umbilical e seguia ao encontro da liberdade que meu pai tanto celebrava. Pelo menos assim eu pensava, iludido pela sensação de imortalidade que só a adolescência consegue investir ao homem. Não olhei pra trás uma única vez, seguro que estava, mas era possível antever o olhar preocupado de minha mãe – que perdera o controle sobre um de seus trunfos – e o olhar orgulhoso daquele homem que me aceitara como filho e, agora, via-me seguir os seus passos.
São Paulo, de início, me intimidou – gigante cinza frenética que era, comparada à cidade em que eu crescera. Mas logo me dei conta de que, se minha inteligência e dedicação garantiriam-me o prestígio no mundo acadêmico, a gorda pensão paterna – aliada à malícia materna – me daria a chave da cidade. De cara, fui aceito em um círculo de alunos influentes, porém indolentes, e não se passou muito tempo até que eu os influenciasse mais do que eles à mim. Aprendi rápido o valor de um favor devido e, prestativo que era, nunca estive sozinho. Era convidado – por vezes, arrastado – para as festas perdulárias da elite, bem como para farras estudantis de toda espécie. Experimentei dos prazeres mais intensos da vida mas, endurecido pelo senso prático herdado de minha mãe, não me deixei perder. Pelo contrário. Arquitetava sempre novas maneiras de tirar o máximo proveito da situação, resguardado pela minha educação esmerada que impedia-me de ser visto como mau caráter.
Na faculdade, consegui manter-me – com certa facilidade – como primeiro da turma. De início o fazia por orgulho, depois, por necessidade. Eu não era nada feio, posto que herdei os traços angulosos de minha mãe. Poderia ter as mulheres que quisesse. E tive muitas. Mas não me interessavam tanto as moças libertinas da alta roda, fúteis e autoritárias. Tinha apreço mesmo era pelas garotas intelectuais e mais recatadas que me convidavam a participar de grupos de estudo. Amava a dificuldade em seduzí-las e a entrega com que elas finalmente cediam aos meus caprichos. Ademais, apreciava a facilidade em ignorá-las depois que me cansavam, pois estas eram as que mais temiam a má-fama. No segundo ano, principiei a dar aulas particulares para os calouros. E não foi pelo dinheiro. Perdi a conta de quantas inocências deflorei, não raras vezes em seus próprios quartos, com os pais a assitirem televisão despreocupados na sala de estar. Nunca enfrentei qualquer tipo de problema. Eu era jovem, livre e tinha um futuro promissor pela frente. Não poderia estar mais feliz.
Mas o destino, em uma sufocante tarde de abril, colocou à minha espera um voluptuoso par de olhos azuis. Uma caloura chamada Simone.
quarta-feira, março 31, 2010
Caçada
O caçador abriu a porta da cabana, apontando a espingarda para o vazio. O ar lá dentro estava pesado e ele sentiu seu estômago pulsar em um instintivo alerta de perigo iminente. A primeira saleta parecia vazia, mas nada estava no lugar. O chão estava coberto de potes e pratos quebrados. À sua esquerda, havia um armário despedaçado que parecia ser o epicentro da destruição. Pequenas marcas alongadas de sangue fresco no assoalho sugeriam que alguma coisa viva fora arrastada desde o móvel até a parede oposta. Uma peça de tapeçaria simplória, que estivera ali pendurada, amontoava-se displicente sobre um volume junto ao chão. O homem contornou a pequena mesa e ergueu a tapeçaria com a ponta da espingarda. O movimento suave liberou no ar um cheiro denso de vísceras e sangue, que penetrou fundo em suas narinas e encheu os seus pulmões. Fechou os olhos por um breve instante, tentando se controlar. Conseguiu, por fim, olhar e concluiu que aquilo era o que sobrara do frágil corpo de uma senhora idosa, despedaçado por uma força descomunal. Rezou para que a atrocidade tivesse parado ali. Mas havia algo úmido sendo rasgado no segundo cômodo. E aquele som familiar fez com que seu coração acelerasse ainda mais.
Deslocou-se em silêncio até a porta e se esgueirou pela abertura, bloqueada em parte por uma cesta de vime trançado, ainda cheia de comida. Fragmentos do que teria sido uma capa vermelha estavam espalhados pelo chão. Em cima da cama, um grande lobo castanho abocanhava pedaços do corpo nu de uma menina loura, e os mastigava com deleite. O caçador recuou, tentando recuperar o fôlego, mas não havia mais ar ali, apenas o odor pungente de sangue fresco. Um forte tremor desceu do crânio até a base da sua espinha, e ele teve que sufocar o rugido bárbaro que brotava em seu peito. O chão desapareceu sob seus pés e ele desabou, batendo de costas contra a parede. Sentia a pele arder como fogo, enquanto lutava para respirar.
O lobo ergueu o focinho sujo de sangue no ar, ganiu baixinho e começou a contorcer-se, como se estivesse lutando contra uma armadilha invisível. Grunhia a cada espasmo, enquanto seu corpo mudava. A pele clareou e os membros se alongaram, enquanto as articulações estalavam em ângulos impossíveis. A criatura ergueu-se sobre as patas traseiras e encarou o caçador. Tinha peito e ventre tingidos de vermelho brilhante, cabelos desgrenhados e sujos, mas agora não passava de um garoto de cerca de quinze anos, nu e assustado.
– Papai, eu não queria! – ele correu de encontro ao homem, soluçando, e enterrou a cabeça em seu ombro. – Mas eu estava com tanta fome... não consegui me controlar. Foi... tão rápido!
O homem abraçou-o em silêncio. Pensava na loucura incondicional que é o amor de um pai. Lembrou da primeira vez em que viu o menino. Ele era tão pequeno, tão dependente, um pequeno milagre que precisava de sua proteção e de seu carinho. O mundo ficou menor, porque passou a girar em torno dele. O garoto ainda soluçava, deixando o seu coração aos pedaços. Ambos tremiam muito, mas não por causa do frio. Era o cheiro da carne fresca. Dedos alongados puxaram o cano da espingarda de encontro à própria cabeça.
– Acaba com isso, pai. Eu não quero viver assim... por favor!
O caçador engoliu em seco. Sua cabeça latejava enquanto seus sentidos se expandiam. Em meio à torrente de pensamentos, viu-se consciente do toque frio do aço do gatilho sob seu indicador, da textura do tecido grosso da camisa sobre sua pele, do balanço suave do assoalho de madeira da cabana. O vento leste vinha das colinas e entrava pelas frestas da parede, trazendo o cheiro inconfundível do filho, misturado ao do orvalho sobre os pinheiros distantes. Trazia também mais um odor, que eriçou os seus pêlos e fez seus caninos trincarem: uma matilha de cães. Caçadores!
Os cães desceram a colina em uma corrida frenética, com os homens em seu encalço. Eram dez e todos levavam armas. Seguiam o rastro do lobo desde a cidade. O mais velho deles, ao avistar a cabana, teve um mau presságio e assoviou, chamando os cachorros de volta. Um tiro ressoou pelo vale, assustando os animais. O ar ficou paralisado em um silêncio denso e, por um instante, foi como se todos os corações parassem de bater, aguardando um sinal. Então, a urgência venceu o medo. Os homens engatilharam as armas e desceram, com os cães, a encosta lamacenta que levava ao casebre. Demoraram mais do que o esperado para vencer o pouco mais de um quilômetro de caminho, pois o solo mole fazia com que escorregassem e tropeçassem com freqüência. Ao atingirem a base do traiçoeiro declive, o cheiro da morte os alcançou, e vários homens amarraram seus lenços sobre nariz e boca, antes de prosseguir. Mantinham o dedo no gatilho e os olhos na porta. Um barulho na parte da frente da construção fez com que todos se abaixassem e firmassem a mira, preparando-se para enfrentar qualquer coisa que saísse dali.
Da escuridão, emergiu um caçador. Levava nos braços um enorme lobo cinzento sem vida, o maior que já haviam visto. O animal tinha a espessa pelagem coberta de manchas viscosas e a cabeça partida balançando disforme. Era muito pesado, mas ele não parecia importar-se. Carregava o seu fardo quase que com reverência. Apesar de ser alto, suas roupas eram largas demais e a espingarda pendia, desajeitada, em suas costas. Ele chorava. Seu rosto era dor, desespero e determinação. Soluçava, convulsivo, enquanto caminhava, atravessando a campina em direção ao bosque. Sequer se deu conta dos cães que latiam. Tampouco percebeu os dez homens atônitos, que apenas observaram enquanto ele desaparecia por entre as árvores. Em seu futuro nebuloso, um único propósito: viver, o melhor que pudesse, a vida que o seu pai lhe deu.
terça-feira, fevereiro 23, 2010
Carnaval: o outro lado da folia
No meio da amoralidade, o coração negro do Pierrot batia forte. Eram tantas presas fáceis! Difícil escolher apenas uma.
II.
Sua mãe dizia que ela nascera para ser rainha. E a profecia se realizava, por um dia, a cada ano, ao longo da avenida.
III.
O fracassado lutador de sumô fugira do Japão em desonra. No Brasil, encontrou a felicidade: todo fevereiro, virava Rei!
IV.
Adorava o Carnaval. Nessa época, sempre conseguia uns três ou quatro rins a mais para vender no mercado negro.
V.
Quando o Pierrot levou a Colombina para a cama, descobriu que, na verdade, ela era o Arlequim.
VI.
Vinte facadas foi pouco para aquela atriz nojenta que roubara sua realeza. A avenida era toda sua, outra vez. Avante, bateria!
VII.
Morria de medo da Quarta-Feira de cinzas. Acordava com a realidade a beliscar suas pernas, apenas mais um na multidão.
VIII.
Acordou chorando. Tirou a tinta do corpo, vestiu o uniforme. E lá foi ela enfiar a rotina goela abaixo outra vez...
IX.
Mastigou sem pressa o último pedaço de carne. Delicioso! Fígado de foilão, agora, só no ano que vem...
sábado, janeiro 09, 2010
Os Crimes do Zodíaco
Áries
Descontrolada, berrava sem parar com ele. Onde já se viu usar a jarra de cristal para aguar as plantas? A peça quebrada, que estivera brilhando na mão dele, atingiu-a com força no rosto. Uma, duas, três vezes. Silêncio, afinal.
Touro
– Tem certeza que sabe usar o câmbio automático?
– Claro que sei! É óbvio! Tudo mundo sabe! Você não?
– Você não acha melhor pedir aj...
– Não precisa! Eu sei como faz! Quer ver?
Ela engatou a ré por engano e acelerou. Matou três pessoas.
Gêmeos
A textura da pele do pescoço dele sob seus dedos lembrava a seda, que lembrava o presente ousado que ganhara do aluno, que lembrava a sensação de fazer o que era proibido, que lembrava banho de sol nua, que lembrava liberdade, que lembrava que acabara de conquistar a sua. Largou o corpo flácido do marido no chão e foi viver.
Câncer
Quando ele a deixou, ela pensou em matá-lo. Mas não suportaria viver sem ele. Então, passou a matar todas as mulheres que se aproximavam demais.
Leão
O resultado do exame: câncer no estômago. Era tão orgulhoso, que não se deixaria matar por uma doença tão cruel. Pegou uma faca, amolou, e fez ele mesmo o serviço.
Virgem
Com movimentos seguros, removeu as duas pálpebras da mulher. Ajeitou os lábios dela, já rijos, para que arremedassem o sorriso tosco que entalhara em sua garganta. Acomodou os cabelos negros em leque e deixou um lírio sobre os seios nus. Parabenizou-se em silêncio: fizera um trabalho perfeito.
Libra
Era um marido muito dedicado. Antes de deitar, sua mulher confidenciara que o seu maior sonho era ganhar a cabeça de sua chefe em uma bandeja de prata. Quando ela acordou, olhos mortos a encaravam de cima da mesa.
Escorpião
Cento e cinqüenta corpos no salão de culto. Homens, mulheres, crianças e velhos, caídos uns sobre os outros. Do chão, uma gargalhada quebra o silêncio. O Pastor bebera suco ao invés de veneno.
Sagitário
O policial não tinha o direito de fazer isso com ele. Tudo bem que os pneus do carro estavam mesmo carecas, a licença estava mesmo vencida, e ele estava mesmo embriagado. Mas isso lá era motivo para ser tão rigoroso? Por isso, quando recebeu a prancheta para assinar o flagrante, enfiou a caneta no olho do policial e fugiu.
Capricórnio
Cuidou com afinco da tia avarenta durante seis anos. No dia seguinte à assinatura de um novo testamento, que beneficiava o sobrinho, um escorregão no piso molhado a fez rolar escada abaixo. Dessa vez, ele não a socorreu.
Aquário
Ele jurou que não contaria mais mentiras. O bilhete que ela encontrou mostrava que ele não cumprira com sua palavra. Então deu a ele um remédio para dormir e sumiu no mundo. Deixou para trás apenas a língua dele, pregada na porta. Agora, ele cumpriria a sua promessa na marra.
Peixes
Na saída do shopping, só encontrou o carro porque tinha muita gente em volta. Dois bombeiros removiam um pequenino volume pelo parabrisa quebrado: seu filho de um ano, esquecido lá dentro, morrera sufocado.
terça-feira, janeiro 05, 2010
Microcontos II
Preguei uma peça no meu coração involuntário: um prego enorme. Preso na tua porta, ele parou de doer.
II.
Limpou a navalha no lençol do motel e beijou de novo os cabelos dela: a cada vez, fica mais difícil encontrar loiras de verdade...
III.
Entediada com a folha do caderno, rabiscou as paredes do apartamento. Quando o espaço acabou, pulou da janela e virou infinito.
IV.
"Bebeu até morrer!", concluiu o perito na cena do crime. "Cachaça?", perguntou o detetive. "Não. Groselha! Era diabético.”
V.
Arrancou, em fuga, com o carro. Um salto, baque surdo. Desceu pra ver. Era o seu passado. Deu marcha ré por cima. E partiu.
VI.
Enfarte do miocárdio, é o que dirão – pensou enquanto tombava. Ninguém saberá que seu coração explodiu mesmo de tristeza.
VII.
"Anjo é uma alma humana cujo primeiro suspiro coincidiu com o último". Ele fechou o livro e sorriu: seu filho fora convocado no céu!
VIII.
Pegou um dos cacos de seu coração partido e degolou a infeliz. Ela deveria saber que amor de psicopata é mortal.
IX.
"Fui!". Era tudo que estava escrito no bilhete do suicida. Ele nunca fora um homem de muitas palavras...
X.
Desfez o aviãozinho de papel que, vindo do outro lado da sala de aula, o acertara em cheio na cabeça. Reconheceu como seu o desenho interno. Um coração. Embaixo de onde escrevera “Toma, é teu!”, ela escreveu em letras miúdas: “Estou devolvendo. Não quero mais!”.
XI.
"Adivinha quem é?", disse, cobrindo os olhos dela. A resposta veio rápida e segura. A dúvida, também: quem diabos é Murilo?
terça-feira, dezembro 22, 2009
Dança Sombria
para semear morte e loucura..."
Acordei assustado. Estou molhado de suor gelado, o pijama grudado no corpo. Tem gente gritando na rua, muita gente. Alguma coisa está errada. Meu abajur está apagado. Deixo ele sempre aceso para afastar as sombras. Quando eu esqueço, as sombras entram com a luz da rua. Passam pelas frestas da janela e dançam e rodopiam. Elas têm braços compridos e chamam o meu nome baixinho enquanto eu durmo. Eu sei o que elas querem. Querem que eu vire uma sombra e dance com elas para sempre. Mas eu não quero. Por isso eu grito. Grito bem alto, e elas vão embora.
Estranho. Não consigo acender o abajur. A luz acabou. Não tem luz em lugar nenhum. Só a lua cheia brilha, grandona, enchendo o mundo de sombras compridas. Elas estão em toda parte. Na rua, nas casas, no meu quarto. Dançando sem parar. Eu gritei e gritei, mas dessa vez elas não foram embora. Ouço meu nome repetido em milhares de cochichos. Sinto dedos finos no meu rosto. Meus olhos estão pesados de um sono esquisito. Estou com medo. Está me dando vontade de dançar.
quinta-feira, novembro 26, 2009
Pássaro
O apartamento novo é bonito. Bem grande. Gostei muito do meu quarto. É cor-de-rosa. Cabem todos os meus bichinhos de pelúcia. Muito melhor que nossa casa velha. Papai disse que pagou barato. Tinha acontecido um acidente aqui, e ninguém queria comprar.
Ontem, apareceu uma menininha do meu tamanho. Ela usava um vestido branco. Era muito branca, também. Seu nome é Isabella. Ela brincou comigo de boneca. Disse que voltaria hoje, para me ensinar a voar como um pássaro. E não é que ela veio? Ela falou que é muito fácil. É só correr e pular e ser feliz pra sempre. Ela me mostrou como se faz. Correu pelo quarto, pulou em cima da minha cama e saiu voando pela janela. Agora é a minha vez.
quinta-feira, novembro 12, 2009
Consumação
Vanessa penteava os longos cabelos negros em frente ao espelho. Seus movimentos delicados contrastavam com a velocidade dos seus pensamentos. Essa seria a noite mais importante da sua vida. Era seu vigésimo primeiro aniversário, e Juliano cumpriria a promessa que fizera a ela. Passara o dia em preparativos para recebê-lo, vedando as janelas da ensolarada cobertura com grossas cortinas negras e iluminando o espaço com velas. O cheiro adocicado do incenso dominava, hipnótico, o ar.
Juliano despertou em arroubos ardentes de ansiedade. O dia havia chegado. O seu dia. Após dezoito anos de espera, Vanessa seria sua para sempre. Não que isso fosse muito. Afinal, viver quinhentos anos fazia o tempo voar. Na verdade, ela quebrara o tédio da imortalidade com a sua existência frágil. Uma exótica distração. Em seu descanso, sonhara com ela, figura etérea, o sangue fluindo vermelho-vivo através da artéria aberta no pescoço lívido, escorrendo por sua língua e boca, alimentando-o com vida, volúpia e sabor. O sabor da vingança.
Quando entrou no apartamento, tarde da noite, Vanessa o esperava vestindo apenas uma insinuante camisola de seda preta, que deixava entrever praias brancas de pele macia. Os olhos dela transbordavam de obsessão castanha. O mesmo olhar com que, aos quinze anos de idade, ela o fizera jurar que a transformaria. Ser como ele. Permitira que ela vivesse apenas para isso. Arrancara-a dos braços mortos dos pais, ainda bebê, e a preparara para que ela fosse a sua Nêmesis, a vingança encarnada, seu flagelo. Agora, faltava pouco. O ritual se estenderia muito além da proteção da noite e, ao final do terceiro dia, ela renasceria sedenta e bela. Ganharia, como presente, uma presa especial para aplacar o seu desejo de sangue. Seu próprio tio Jonas, o rosto que foi gravado a fogo na mente de Juliano, o maldito padre que destruíra seu irmão Samir. Padre Jonas, que acreditava que a sobrinha fora morta junto com os pais, descobriria então o real paradeiro dela, e teria sua última e dolorosa decepção. Vanessa o tirou de seu transe, conduzindo-o pela mão em direção à cama, que havia sido deslocada para o centro do recinto. Saindo de cada um dos pés de sua estrutura de metal, grossas cordas repousavam emboladas sobre o colchão.
– Para que são? – Juliano perguntou, abafando o riso.
– Para que você me amarre – ela respondeu, dando de ombros – Sei que não tem a menor necessidade, mas, nos meus sonhos, é assim que acontece...
– Como quiser – ele aquiesceu, beijando-a com paixão.
O beijo de Juliano fez com que ela lembrasse de cada abraço, beijo e carinho que recebera dele desde a infância. Imagens delirantes assaltaram sua mente, o rosto dele misturando-se ao de seus pais. Deixou que ele explorasse seu corpo com a língua gélida, enquanto a despia devagar. Rolou com ele na cama, lutando para o libertar de suas roupas. Braços, peito, costas e pernas revelaram-se, pouco a pouco em sua palidez doentia. Movia-se, provocante, exibindo o próprio pescoço em uma dança silenciosa. Podia ver o desejo ardente nos olhos dele, agora vermelhos. Seus lábios entreabertos retraíram-se em um esgar sequioso. O momento estava chegando.
Ele a amarrou com firmeza, braços e pernas formando um X na cama. Indefesa, ela fechou os olhos e esperou pela mordida. Assassino! Isso é o que ele era! Ela era pequena demais, mas a imagem nunca saíra de seus sonhos. Ele matara seus pais a sangue frio, apenas para tomá-la para si. A mordida veio cruel, dilacerando seu pescoço. A dor fria espalhou-se, e ela teve que usar toda a repulsa que sentia por ele para não desmaiar. Sentiu-o sugando seu sangue com voracidade, e isso trouxe novo fôlego ao seu ódio. Concentrando-se, utilizou toda a força que restava em seu corpo para puxar as cordas atadas aos seus braços, na esperança de que o tempo transcorrido até então fosse o bastante. Uma a uma, as cortinas soltaram-se do teto e despencaram para o chão, abrindo caminho para que os raios alaranjados do sol nascente invadissem o apartamento. Juliano gritou em agonia, seu corpo incendiando-se como o tecido negro das cortinas ao encontrar as velas.
O calor das chamas que a consumiam era libertador. A dor, reconfortante. Ela sorriu, satisfeita, enquanto contemplava o último amanhecer de sua vida.
quinta-feira, outubro 29, 2009
Reflexões
Preciso me livrar desse outro eu que há em mim, sufocado, engasgado. Que me olha meio de lado no espelho, ávido pra sair. Ele apenas espera por uma fração de segundo, um descuido ou distração, para assumir o controle, escurecendo-me os olhos para que possa usá-los, roubando-me o vigor das mãos. Fico prisioneiro em meu corpo, vagamente consciente da minha triste sina de arauto, perdido em meio a pensamentos que não são meus. Mil e uma vidas paralelas construídas de imagens, sons e mais uma força desconhecida que irrompe inquieta, ardente, e só se acalma ante o estrondoso cair do ponto final. Obtuso e imerso em uma sucessão de vazios...
Bruno encarava a linha interrompida, incapaz de continuar a escrever. Como em todas as outras vezes, o que o impedia não era a falta de idéias, mas a fragilidade do próprio texto. Tudo o que conseguia era registrar um arremedo falho e inconclusivo do que passava pela sua cabeça. A essa altura, não sabia mais dizer se o que pensava valia a pena. Largou a caneta.
Levantou-se e caminhou pelo minúsculo apartamento como se pudesse encontrar algum conforto nas paredes nuas e descascadas de umidade. Só conseguiu sentir-se pequeno e sozinho. Não tinha nada além dos poucos pertences que o seu emprego medíocre permitira comprar. Seu único luxo era um espelho de corpo inteiro pendurado em uma das paredes.
Sorriu para o homem opaco refletido nele. Não era nada feio. Na verdade, faltava habilidade para se relacionar com as mulheres. Também não tinha muitos amigos, era tímido demais para isso. As olheiras fundas se destacavam na palidez do seu rosto, fazendo com que parecesse ter trinta e oito anos ao invés de trinta e dois. Tentou imaginar uma vida nova para si, mas seu desânimo o traiu. Tudo parecia impossível demais. Fez uma careta para si mesmo, e observou com ironia a imagem perfeita refletida no espelho. De todos os aspectos da sua vida, esse parecia ser o único sobre o qual ainda tinha domínio. Não importava o que fizesse, seu clone especular deveria imitá-lo.
Divertiu-se por algum tempo obrigando o seu reflexo a fazer poses ridículas, pelo simples prazer de estar no comando. Mas por fim achou tudo aquilo muito triste e tomou uma decisão. Pegou sua navalha e colocou-a contra o pescoço. Mataria a si mesmo e ao seu reflexo miserável. Encostou a outra mão na superfície do espelho, tocando o seu outro eu em um gesto melancólico de despedida.
Os dedos do seu reflexo fecharam-se com violência por sobre os seus. Os olhares se encontraram e Bruno sentiu a realidade distorcer e rodopiar à sua volta, como se fosse possível piscar sem fechar os olhos. No momento seguinte, a mão que segurava a navalha afastou-se devagar, por vontade própria. Os dedos afrouxaram a pressão sobre o cabo, e a lâmina escapou para o chão. O entrelace desfez-se e os braços abaixaram-se em sincronia. Sentiu sua boca mexer, mas foi o Outro que falou. “Desculpe, tive que agir. Você estava denegrindo a MINHA imagem!”. Seus olhos agora brilhavam com energia.
O Outro ajeitou o cabelo e Bruno, impotente, viu-se imitando o gesto. “Não deve ser difícil me sair melhor do que você!”, disse em tom de provocação, dando uma piscadela marota antes de virar de costas para o espelho. Bruno não pôde sequer olhar enquanto seu outro eu saía para começar uma vida nova.
quarta-feira, outubro 21, 2009
Mistério em Mallorca
“Impossível!”, pensou o Inspetor Ortiz, caminhando em círculos pelo apartamento enquanto repassava mentalmente todos os detalhes da investigação. Ao entrar para arrumar o quarto, a camareira do hotel havia encontrado Johnny O’Doe morto sobre a cama. Ele estava roxo, com os músculos todos contraídos. As articulações da mão estavam esbranquiçadas de esforço, como se ele tivesse tentado se agarrar, literalmente, à vida.
Johnny tinha trinta e dois anos e era muito conhecido no mundo, tanto pela sua capacidade de lotar estádios com seus shows, quanto pela sua disposição para festas e bebedeiras. Viera à Espanha de passagem, apenas para receber um prêmio em Mallorca. Festejou a noite inteira, voltou ao hotel sozinho, e nunca mais acordou.
O relatório do legista foi tão assustador que o comissário optou por mantê-lo em sigilo. Apesar das especulações da imprensa girarem em torno disso, não foi encontrado nenhum traço de drogas em seu organismo. Seus pulmões estavam cheios de água salgada. Havia vestígios de areia de praia no nariz e sob as unhas, mas uma análise comparativa chegou à conclusão de que não eram de nenhuma praia da Espanha. A equipe forense esquadrinhou o quarto três vezes, mas não encontrou nenhuma pista. Nada. Tudo estava impecável. Nenhum sinal de arrombamento ou luta, nem de que o corpo fora transferido para a cama.
Sentado no chão do quarto, com a cabeça entre as mãos, Ortiz ficou horas tentando rever a cena do crime de diferentes ângulos, em busca do elemento faltante que daria uma explicação para tudo. Ele tinha que estar ali em algum lugar. Lembrou do seu treinamento na Academia de Policia, quando lhe disseram que todo investigador veterano era assombrado por um crime insolúvel. Sentiu um gosto amargo subir pela garganta. Talvez esse fosse o seu.
Sentindo-se derrotado, Ortiz resolveu voltar para a delegacia. Lacrou de novo a porta do quarto e caminhou até o elevador absorto em seus pensamentos. No caminho, cumprimentou com um aceno automático o faxineiro que lavava o chão do corredor.
O faxineiro acompanhou o inspetor com o canto dos olhos, sem interromper seu trabalho. Quando a porta do elevador se fechou, ele suspirou aliviado: ninguém percebera nada. Então ele soltou o primeiro botão da camisa para admirar o objeto que trazia pendurado no pescoço e que, de algum modo, conseguira subtrair do corpo do músico antes da polícia chegar. Ele contemplou fascinado o enorme medalhão de prata cintilante que pendia da corrente de elos grossos. Haviam seis pedras verdes dispostas em círculo engastadas na superfície do disco, emolduradas por relevos parecidos com letras, mas que ele não sabia dizer o que significavam. No dia seguinte, iria procurar um antiquário no centro. Esperava conseguir uma boa quantia por ele.
Naquela noite, em seu apartamento no subúrbio, o faxineiro caiu em um sono profundo. Assim como Johnny O’Doe, esqueceu-se de tirar o medalhão do pescoço.
Sonhou que estava em uma praia de areias brancas. Atrás dele, uma cidade prateada brilhava sob a lua cheia. Não havia visto nada assim tão bonito em toda a sua vida. A cidade ancestral e misteriosa parecia tremeluzir junto com as estrelas do céu. Um vento forte desgrenhou os seus cabelos, e ele virou-se novamente para olhar o mar. Compreendeu que estava em uma grande ilha. O mar, negro e denso como a noite, envolvia a costa em um abraço frio. Somente os pequenos reflexos da lua na água indicavam movimento. E foi aí que ele percebeu que algo estava errado. O horizonte se aproximava rapidamente, alto demais. Uma imensa muralha negra de água e fúria, que lhe parecia ser cinco, dez, vinte, muitas vezes maior que ele. Tentou acordar, mas não conseguiu. Tudo aconteceu rápido demais. O mar atingiu a ilha e obliterou a cidade, como se o oceano se fechasse sobre ela. Ele tentou agarrar-se como pode no chão, nas árvores, nas construções prateadas, mas a água implacável castigou o seu corpo e o jogou de um lado pro outro, de modo que ele nem sabia mais para que lado ficava o céu. Estava ficando sem ar.
Na manhã seguinte, um novo corpo jazia retorcido sobre a cama em um quarto trancado por dentro. Mas para esse, ninguém deu importância. Quatro dias depois, o senhorio arrombou a porta por causa do mau cheiro. Enojado, ele só se aproximou da cama porque algo muito brilhante chamou sua atenção. “Isso deve bastar para compensar os três meses de aluguéis atrasados!”, disse para si mesmo, pegando o medalhão com o seu lenço e o guardando no bolso do seu casaco. E então ligou para a policia.
quarta-feira, outubro 14, 2009
Microcontos
sexta-feira, setembro 25, 2009
Ilícito
Suas mãos suadas apertaram ainda mais o volante, tentando conter o tremor que recomeçara. Hesitou por um instante, então arrancou a gravata com um único puxão. Limpou o suor da testa no punho da camisa e, nervoso, tornou a segurar o volante. Tinha que ser agora.
Com um movimento brusco, o carro cruzou as três faixas da avenida em direção ao retorno, o que provocou um coro de buzinas em protesto. Jaime sequer percebeu. No estado em que se encontrava, ignorava por completo o caos que dominava a metrópole. Concentrar-se ficava cada vez mais difícil. A cada segundo, aumentava a consciência de que o que desejava estava ali mesmo, em um pequeno pacote oculto sob o banco do passageiro.
Não posso! – ponderou, os dentes trincando de tensão. – Não com as ruas lotadas de gente e sensores para todo o lado. Quantos Vigilantes estariam misturados à multidão?
Ele sabia muito bem o que acontecia quando alguém violava a Interdição. Presenciara a cena uma vez. Fora tudo muito rápido, mas ele nunca pôde esquecer os gritos. Não mesmo. Até os que nunca tiveram motivo para temer tinham pesadelos com isso.
Enrijeceu-se no banco e obrigou-se a pensar em outra coisa, ou não conseguiria chegar até a estrada. Seus pensamentos flutuaram, desconexos, por alguns minutos e, por fim, pousaram nas lembranças da sua vida antes da Interdição. Ele não podia culpar-se por isso, sua geração era a que mais sofria. Tinha cerca de vinte anos quando tudo começou.
Naquela época a cidade era mais suja e malcheirosa, mas as pessoas ainda tolevaram-se umas às outras. Conseguia-se comprar a droga em qualquer esquina e fazer uso dela na maioria dos lugares, sem qualquer tipo de sanção. Era um ritual pessoal. Mas o costume começou a perder a força e alguns lugares começaram a proibi-lo uso em respeito às pessoas limpas. Foi o bastante para que ele ganhasse novo fôlego. As proibições começaram a ser desrespeitadas, gerando constrangimento e preconceito. Então o governo resolveu interferir.
Baseado numa antiga lei esquecida, o uso foi proibido em todos os lugares públicos fechados e a fiscalização endureceu. Em pouco tempo, as calçadas e ruas foram tomadas pelos usuários e por seu odor característico, formando uma verdadeira barreira humana para quem quisesse entrar ou sair de qualquer lugar. O preconceito intensificou-se, e suas manifestações ficaram cada vez mais violentas. A resposta do governo foi enérgica, proibindo qualquer uso público da substância. As ruas esvaziaram-se e a vida noturna da cidade quase desapareceu. Os Sujos trancavam-se em casa, sozinhos ou em pequenos grupos, e consumiam quantidades absurdas da droga. À essa altura, o preconceito se transformara em ódio mútuo, e os vizinhos Limpos começaram a reagir.
Para evitar uma guerra civil, o governo baixou a Interdição, uma medida extrema e radical, proibindo totalmente o comércio da droga e banindo qualquer uso detectável por seus sensores em um raio de cem quilômetros em torno da cidade. A pena era a execução sumária e imediata. Muitos Limpos extremistas alistaram-se nas forças da Vigilância, e o que se sucedeu foi uma carnificina legalizada, que impôs a lei pelo medo.
Passados quase dez anos, os Sujos que sobreviveram permaneciam escondidos. Poucos conseguiram de fato abandonar o vício, pois a droga era potente demais. Os Vigilantes, novamente misturados aos civis, só se revelavam quando ocorria uma violação. A sociedade vivia em tensão constante, pois não era mais possível saber quem era quem. As pessoas afastaram-se umas das outras, e assumiram um comportamento hostil. Mas a cidade estava limpa, uma utopia em verde e cinza.
Jaime dirigia em alta velocidade pela estrada, os olhos fixos no horizonte. Até que seus olhos captaram ao longe o marco verde que procurava. Ao aproximar-se da grande placa na qual se lia “Limite da Interdição Municipal – Respire por sua própria conta e risco”, saiu para o acostamento, reduzindo a velocidade. Lançou o carro em uma pequena trilha de terra batida que conduzia a uma grande clareira na vegetação. Havia muitos carros estacionados ali.
Encontrou um lugar entre eles e parou. Enfiou a mão ávida embaixo do banco do passageiro e apanhou o embrulho pardo em seu esconderijo. Desceu do carro aos tropeços e sentou-se sobre o capô. Dentro do pacote havia um maço de cigarros vagabundos, todo amassado, que comprara, por um preço absurdo, de um contrabandista. Segurou um deles entre os dedos e o cheirou, deliciando-se com o aroma. Bateu a mão livre nos bolsos, e percebeu, com horror, que não trouxera isqueiro ou fósforos.
– Tome, use o meu! – um homem, sentado no capô de um carro próximo, atirou-lhe um isqueiro. O objeto descreveu uma curva perfeita no ar, e Jaime apanhou-o sem dificuldade. Ao fundo, pessoas conversavam animadas, e havia música alta vinda de um dos carros.
Jaime acendeu o cigarro e jogou o isqueiro de volta, tentando lembrar se já tinha visto aquele homem na cidade. Não importa! – concluiu, soprando a fumaça de sua primeira tragada – Aqui, somos todos amigos!
sexta-feira, setembro 18, 2009
Coisas Simples
quinta-feira, setembro 17, 2009
Olha que Blog maneiro!
2. poste o link de quem te indicou.
3. indique pessoas de sua preferência.
4. avise o indicado.
5. publique as regras.
6. confira se os blogs indicados repassaram os selos e as regras.
segunda-feira, setembro 07, 2009
Doce, mas não tão doce
sábado, setembro 05, 2009
Vale a pena ficar de olho nesse blog!
segunda-feira, agosto 24, 2009
Prólogo
As sombras... a dor... como eu odeio quando isto acontece! Minha cabeça está a ponto de explodir. Tudo fica tão estranho: as cores...as pessoas...
Meu Deus! O que é isto?
– Não, papai, não me mach.....
– Ei! O senhor está bem, moço?
Abri os olhos, tentando responder a pergunta, mas dos meus lábios saíram apenas umas poucas palavras sem sentido. O mundo não passava de um borrão tentando ganhar uma forma tangível.
– Moço? Ah, que bom... o senhor está vivo!
Quis dizer que isso não representava grande coisa, porque minha vida tinha se tornado um inferno de uns tempos pra cá: Stella me deixou, fui chutado do emprego, e ainda por cima começaram essas malditas dores de cabeça... é, a situação não estava nada boa. Contive minha língua quando o borrão na minha frente se transformou numa menininha de uns seis anos com um olhar curioso. Não, a criança não tinha culpa do que estava acontecendo comigo.
– Moço?
– Oi! – disse ainda meio zonzo – O que aconteceu?
– O senhor vinha andando e, de repente, começou a ficar esquisito. Então caiu sentado aqui, não lembra?
Não, não me lembrava. Quando as dores começam, minha visão vai ficando distorcida e eu perco a noção do que estou fazendo.
Olhei ao redor: pessoas passando apressadamente. Olhei o relógio: meio dia e meia. Não era de se admirar que ninguém mais tivesse parado para ver o que havia acontecido. Hoje em dia, as pessoas estão entretidas demais com seus próprios problemas. Por que eu, um Zé-Ninguém no meio da multidão, mereceria atenção?
– Já estou melhor! – esforcei-me para dizer. Embora já sentisse a dor indo embora, sabia que ela voltaria de novo. Talvez à noite. Talvez antes. – Onde está sua mãe?
Ela apenas apontou displicentemente com o polegar por sobre o ombro. Olhei naquela direção e pude sentir o gosto amargo da ironia em minha garganta: eu havia caído junto à porta de uma farmácia!
– Levanta, moço! – disse a menina me puxando pelo braço.
No instante em que a menina me tocou, fui tomado por uma angústia incrível. Levantei-me, tentando esconder as lágrimas que escorriam da minha face.
– Por que o senhor está chorando?
– ... não sei.... – murmurei. E de fato não sabia. Apenas sentia medo.
Era um como um eco em minha mente. Na primeira vez, achei que fosse a dor de cabeça, mas agora era terrivelmente real.
Olhei para a menina e encontrei seus olhos intensamente verdes. Subitamente, eles saltaram para dentro de mim, como uma piscina translúcida, e eu vi. Aquele pequeno anjinho mostrava marcas permanentes de sofrimento, como manchas em um lençol inteiramente branco. Era como se as memórias fossem minhas, mas eu sabia que não eram.
– Sam!!!
A criança desviou o olhar, assustada. Uma loura de uns trinta anos saiu da farmácia apressadamente e, literalmente, arrancou a criança da minha frente.
– Samantha, – ralhou a mulher, indignada, enquanto acenava para um táxi – quantas vezes já lhe disse para não falar com estranhos?
– Mas eu estava ajud.......
– Nada de “mas”! Vamos pra casa e hoje não vai ter TV depois da janta!
O carro encostou, eu precisava agir rápido. Segurei a mulher pelo braço. Ela voltou-se, confusa.
– Sua filha estava apenas me ajudando. – disse antes que ela pudesse gritar – Eu caí e ela me ajudou a levantar, foi só isso.
A mulher me fitou um instante através de seus óculos escuros. Eu sabia o que havia por detrás deles, embora ela se esforçasse para esconder.
– Isso é verdade, Sam? – perguntou, meio insegura.
– Sim, Mamãe.
– Tudo bem, então. Vamos embora, filha – decretou, abrindo a porta do táxi.
– Espere! – gritei, me aproximando dela – Por que a senhora não foi à polícia?
A mulher empalideceu. Sam não demonstrou ter ouvido o que eu falei. Estava entretida demais observando um papel de bala que flutuava ao sabor da brisa de outono.
– Não sei do que o senhor está falando – disse-me, sem graça.
Sem dizer mais nada, enfiou a menina no carro e entrou, batendo a porta.
– Nós sabemos que você sabe, não é, Sam? – pensei comigo mesmo enquanto observava o veículo se afastando.
quinta-feira, julho 23, 2009
Para sempre
Fui enfiado em um caixão apertado. Afixaram a tampa e, além da tranca, martelaram pregos em toda a volta. Queriam garantir que eu não saísse mais dali. Senti um baque quando me deixaram cair na cova do cemitério, mas daqui, não dá pra ouvir mais nada. Devem ter me enterrado bem fundo, pois o silêncio é absoluto. Não posso gritar, não posso me mexer. Também não posso morrer.
domingo, julho 12, 2009
A Prisioneira
A silhueta negra do Abade se destacava contra a luz das tochas dos cruzados. Havia centenas delas. O ar estava denso e insuportavelmente quente, o que deixava os cavalos ainda mais agitados. Ele ergueu os braços em direção à cidade e liberou o ataque:
– Neca eos omnes. Deus suos agnoscet!
E os cavaleiros partiram, abrindo uma trilha de sangue e corpos mutilados até os portões da cidade. As tochas vieram logo atrás, tocando tudo que ainda se mexia. Um cheiro acre e pungente tomou o ar. Pessoas em chamas corriam pelo campos aos berros, não dava mais para distinguir se eram homens, mulheres, idosos ou crianças. Os olhos do Abade brilhavam de satisfação: Béziers caíra, mas ele iria até o fim. O sorriso que se abriu em seu rosto não era humano.
Jean-Baptiste acordou gritando. Estava banhando em suor. Eram quase duas da manhã, mas ele sabia que passaria o restante da noite em claro. O problema era o cheiro. Podia lavar o rosto e as mãos, banhar-se em perfume, mas o cheiro de carne queimada não ia embora. As crises de insônia estavam ficando cada vez mais freqüentes, e Deus havia tempos não atendia mais as suas preces para que trouxesse o sono de volta. Testemunhara coisas demais. Apanhou na gaveta um lenço perfumado, cobriu com ele o nariz e a boca, e deixou-se ficar na cama contemplando o teto, tentando ouvir o que se passava lá fora. Aparentemente, ninguém se alarmara com o seu grito. Conseguiu distinguir ao longe a movimentação da patrulha noturna, quebrando com passos regulares a monótona sinfonia das criaturas da noite. Sentiu uma ilusória, porém reconfortante, sensação de segurança.
Por volta das três da manhã, bateram vigorosamente em sua porta, o que fez seu coração disparar em agonia: não ouvira ninguém se aproximar. Cautelosamente, foi até a porta e espiou pela fechadura: era o miúdo noviço que estava em vigília na masmorra. Destrancou a porta e a abriu o suficiente para passar sua cabeça.
– Pois não?
– Sss.....Senhor, temos uma nova prisioneira – o noviço suava frio e gaguejava, visivelmente alterado – Pep...pediram que eu viesse buscá-lo!
– Aguarde um instante, vou me vestir.
Enquanto vestia rapidamente sua batina negra, Jean-Baptiste ponderou que o noviço talvez estivesse desconfortável em acordar um superior no meio da noite. Melhor assim: seu segredo estava protegido. O Inquisidor é um instrumento da vontade de Deus, e as pessoas poderiam interpretar os seus pesadelos e gritos noturnos como um sinal de que Ele o abandonou. Seria o seu fim.
O padre deixou o seu quarto e, juntamente com o noviço, seguiu em direção à entrada da masmorra. Enquanto atravessavam o pátio, o rapaz lhe fez um breve relatório da situação. Em uma pequena aldeia chamada Berriac, nas imediações de Carcassonne, homens que iam caçar na floresta começaram a sumir sem deixar pistas. Quando o número chegou a vinte e cinco, as mulheres da aldeia se armaram de facões e machados e organizaram uma expedição para tentar descobrir o que estava acontecendo. Em um ponto de difícil acesso, onde um córrego caudaloso cortava a floresta, encontraram uma cabana em péssimas condições. Dentro dela, encontraram uma mulher cozinhando um coelho com ervas. O seu aspecto e as condições do lugar não deixaram dúvidas às mulheres de que tinham encontrado a responsável pelo desaparecimento dos seus homens. Ela foi amarrada e trazida até aqui. Algumas mulheres seguiram o córrego à procura dos corpos, mas nada foi encontrado.
Na ante-sala da masmorra, a confusão era generalizada. As mulheres enlouquecidas gritavam pela execução da bruxa na fogueira. Os carcereiros e auxiliares, bem como outros dois padres, tentavam contê-las e conduzí-las para fora dali, mas também discutiam entre si sobre as providências a serem tomadas. A cabeça de Jean-Baptiste ainda latejava por causa do pesadelo e do perfume que usara para tentar esquecer aquele cheiro de carne queimada. Com um longo suspiro, começou a cumprir o seu papel.
– Basta! – ordenou com uma voz límpida e potente.
As mulheres se calaram, assustadas. Antes que elas voltassem a protestar, ele continuou.
– Já fui informado da situação e tenho muito trabalho a fazer! Levem as mulheres para o pátio e dêem-lhes água e comida. Saiam todos!
Discretamente, fez um sinal para que dois dos carrascos montassem guarda na porta pelo lado de fora. Não queria de forma alguma que as mulheres tentassem entrar ali de novo, tudo devia ser feito na mais perfeita calma. E então ele desceu as escadas que levavam à masmorra.
...
Oculto nas sombras da masmorra, Padre Jean-Baptiste observava silenciosamente a criatura na cela. Ela estava encolhida sobre a palha amontoada em um dos cantos, cabeça baixa, abraçando os joelhos. Suas roupas haviam sido completamente removidas, como manda o protocolo, e ela batia os dentes e soluçava baixinho por causa do frio desumano, balançando ritmicamente o seu corpo pra frente e para trás. Sua pele muito branca se destacava contra o cinza sujo daquele lugar e seus longos cabelos cor de fogo, caídos sobre os ombros, escondiam completamente o seu rosto. Não haviam marcas aparentes em seu corpo: graças a Deus, ela ainda não havia sido tocada.
O religioso deixou-se ficar um longo tempo ali, de olhos semicerrados, repassando mentalmente as informações que havia recebido. As florestas haviam se tornado lugares muito perigosos depois que os hereges foram expulsos de Carcassonne. A lembrança do massacre de Béziers deixara os fora-da-lei ariscos, com pavor de serem capturados e, conseqüentemente, muito mais violentos. Havia muitos relatos de desaparecimentos nas florestas do Languedoc, a mulher poderia não ter nada a ver com isso. Mas, pelo mesmo motivo, não conseguia entender como ela havia conseguido sobreviver sozinha na floresta. De qualquer modo, iria obter a verdade. Foi para isso que os monges dominicanos o treinaram secretamente há muito tempo atrás, antes mesmo da Inquisição existir oficialmente. Ele tirou do pescoço uma corrente de prata da qual pendia uma única chave prateada, a chave-mestra das celas, destrancou a porta e entrou, fechando-a atrás de si.
Assustada com o barulho repentino, a mulher ergueu a cabeça, e encarou o padre com seus grandes olhos azuis. Eles brilhavam intensamente sob a luz bruxuleante das tochas do corredor. Jean-Baptiste conseguia ver o sofrimento neles, como uma mistura de agonia e impotência causada pelo frio. Colocando sua vigorosa mão sob aquele delicado queixo feminino, forçou-a a ficar de pé. Foi então que compreendeu, de uma vez só, porque o noviço estava tão alterado e porque as mulheres a tomaram por uma bruxa. A linda moça, alta e esguia, era muito jovem e tinha o corpo mais bonito que já vira na vida. Do seu lado esquerdo, a região entre o ventre e o dorso estava coberta de lindos desenhos tatuados em negro, semelhantes à runas, que se estendiam da linha da cintura até chegar na axila. O jeito gracioso com que os desenhos terminavam embaixo do seio e nas costas demonstravam cuidado e planejamento. Não eram símbolos mágicos conhecidos, nem marcações rituais. Nunca vira nada parecido nos seus vinte anos de guerra ao oculto e isso o intrigava profundamente.
Ao perceber que o padre olhava espantado para os desenhos em seu corpo, a mulher começou a se debater. Com uma manobra precisa, Jean-Baptiste girou-a de costas travando-lhe ambos os braços atrás do corpo e, jogando seu peso sobre ela, prensou-a de encontro à parede de pedra fria. Ele podia sentir o corpo inteiro dela bater contra o seu, gelado e nervoso. Seu cheiro tinha algo de doce, ainda que selvagem, e lhe trouxe uma sensação que acreditava ter sido apagada a muito tempo: desejo. Não era difícil imaginar o que aconteceria se os caçadores da aldeia realmente a tivessem encontrado sozinha em sua cabana na floresta. Sussurrou diretamente em seu ouvido:
– Pare, ou terei que acorrentá-la!
Indefesa, ela lentamente foi se acalmando. Sua respiração entrecortada desacelerou enquanto o padre lutava para pensar com clareza.
– Fique quieta. Vou soltá-la. – ele pediu.
Afastando-se um passo, percorreu com os dedos as linhas, de alto a baixo, tentando descobrir como haviam sido feitas. Perguntou-lhe:
– O que significam esses desenhos?
Ela começou a chorar baixinho, com medo de fazer barulho. Foi então que ele viu, no seu tornozelo esquerdo, uma marca arroxeada inconfundível, sinal de que alguém a mantivera presa. Daria um belo brinquedo particular para um sádico, pensou consigo mesmo.
– Quem fez isso com você? – também não obteve resposta.
Podia vê-la tremer em desespero. Virou-a e puxou-a para junto de si. Ela parecia engasgada, como se fosse falar alguma coisa.
– Pode confiar em mim. – ele disse, embora soubesse que essa história dificilmente ia acabar bem pra ela.
Ela soltou um gorgolejar meio sinistro e caiu em prantos, sua cabeça contra o peito do religioso. Não conseguia falar. Ela era muda.
Ao compreender isso, Jean-Baptiste sentiu-se subitamente cansado. Poderia até torturá-la, mas não conseguiria nada. Nem respostas, nem uma confissão. Como também não haviam provas concretas de bruxaria, teria que submetê-la à Ordália da Água: ela seria lançada em um lago profundo com uma pesada pedra presa ao seu tornozelo, para que a água fizesse seu julgamento. Se ela fosse inocente, afundaria e se afogaria, caso contrário, flutuaria e seria resgatada apenas para ser queimada na fogueira. Em ambos os casos, isso significaria que o mistério dos desenhos permaneceria sem respostas para sempre. Uma sombra passou pelo seu rosto ao lembrar que em todas as mais de quarenta Ordálias que presidiu, todos os réus se afogaram. Apenas uma vez vira um acusado se erguer da água, mas aquilo fora um erro: antes de ser lançado na lago, todos já haviam percebido que ele não era mais humano. E o que se sucedeu foi uma tragédia que deu muito trabalhou para ser oculta.
Segurou o rosto da garota com as duas mãos, obrigando-a a enfrentar os seus olhos investigadores. Não encontrou maldade naquele azul cristalino, apenas medo. Sentiu novamente aquele misto de curiosidade e desejo assomando contra seu estômago e então tomou uma decisão sombria.
Abrindo a porta da cela, empurrou a ruiva para fora, em direção aos aparelhos de tortura. Situações extremas exigem medidas extremas, era o que seu antigo mestre lhe dizia. Conduziu-a com braço firme por entre os aparelhos até chegar numa Donzela de Ferro enferrujada, instalada contra a parede do fundo da sala. Na altura do umbigo havia um delicado buraco de fechadura. Jean-Baptiste inseriu ali a chave-mestra e a girou. Puxou então a porta, que se abriu sem esforço. O interior era muito escuro, não havia nem sinal dos temidos pregos ali. Sem dizer sequer uma palavra, enfiou a mulher ali dentro e, sem se importar com o terror estampado nos olhos dela, acionou um pequeno mecanismo interno. A porta fechou-se sobre eles com um estrondo, e a escuridão que os espreitava pareceu rodopiar.
...
O religioso empurrou a porta do aparelho novamente, e ele se abriu para a escuridão. Apoiando o braço esquerdo contra a parede para se guiar, puxou a mulher para junto de si. Assim que saíram, a porta bateu com um estrondo atrás deles, trancando-se novamente. Não estavam mais na masmorra. Estavam em um longo corredor escuro que conduzia para fora da fortaleza, um pequeno artifício que possibilitava introduzir secretamente na masmorra determinados prisioneiros.
Jean-Baptiste arrastou-a às cegas ao longo do túnel, que terminava em uma caverna na entrada da floresta. Logo mais dariam pela falta deles, e as buscas começariam. Continuaram avançando floresta adentro, e só pararam pouco antes do amanhecer, quando já estavam bem longe.
Ele havia lhe dado a sua batina para que ela pudesse se proteger minimamente do frio, e tremia recostado a um tronco de árvore. Ela aninhou-se ao lado dele, abraçando-o, e dormiu. Reconfortado pela sensação quente do corpo dela sobre o seu, ele logo adormeceu também.
...
Acordou sobressaltado, com o sol da manhã em seu rosto. Ao abrir os olhos, encontrou um par de olhos azuis que o admiravam. Os cabelos dela ardiam sob a luz da manhã, e ele descobriu que ela era ainda mais bonita longe da escuridão da masmorra. Antes que pudesse compreender o que estava acontecendo, ela beijou-lhe os lábios com doçura e ele foi tomado pelo desejo. Dessa vez, sem chance alguma de controle. Ela se ergueu sobre ele, tirou a batina e o abraçou. E eles rolaram pela relva, entregues um ou outro.
Jean-Baptiste acariciava a pele tatuada dela em veneração, como se tomasse conta de um grande tesouro. Sentiu seu corpo todo entorpecer em êxtase, e ele desejou que esse momento durasse para sempre. Não conseguia mais se mexer, mais isso não importava, estava totalmente enfeitiçado. Ela segurou o seu rosto com as duas mãos e o encarou, sua própria expressão distorcida de prazer, e ele sentiu como se ela o envolvesse completamente. De alguma forma, ele estava dentro dela até a metade, desaparecendo pouco a pouco, mas não havia outro lugar em que quisesse estar.
...
Ela estava deitada na relva nua e sozinha. Seu corpo ainda estremecia de prazer. Ficou um longo tempo ali, contemplando o céu enquanto sentia a energia roubada do padre espalhar-se pelo seu corpo, renovando suas forças. Estava livre novamente. Então ela partiu, desaparecendo no interior da floresta. Encontrar novas vítimas seria apenas questão de tempo.