quinta-feira, outubro 29, 2009

Reflexões




"All that you see or seem, is but a dream within a dream"
Edgar Allan Poe


Preciso me livrar desse outro eu que há em mim, sufocado, engasgado. Que me olha meio de lado no espelho, ávido pra sair. Ele apenas espera por uma fração de segundo, um descuido ou distração, para assumir o controle, escurecendo-me os olhos para que possa usá-los, roubando-me o vigor das mãos. Fico prisioneiro em meu corpo, vagamente consciente da minha triste sina de arauto, perdido em meio a pensamentos que não são meus. Mil e uma vidas paralelas construídas de imagens, sons e mais uma força desconhecida que irrompe inquieta, ardente, e só se acalma ante o estrondoso cair do ponto final. Obtuso e imerso em uma sucessão de vazios...


Bruno encarava a linha interrompida, incapaz de continuar a escrever. Como em todas as outras vezes, o que o impedia não era a falta de idéias, mas a fragilidade do próprio texto. Tudo o que conseguia era registrar um arremedo falho e inconclusivo do que passava pela sua cabeça. A essa altura, não sabia mais dizer se o que pensava valia a pena. Largou a caneta.

Levantou-se e caminhou pelo minúsculo apartamento como se pudesse encontrar algum conforto nas paredes nuas e descascadas de umidade. Só conseguiu sentir-se pequeno e sozinho. Não tinha nada além dos poucos pertences que o seu emprego medíocre permitira comprar. Seu único luxo era um espelho de corpo inteiro pendurado em uma das paredes.

Sorriu para o homem opaco refletido nele. Não era nada feio. Na verdade, faltava habilidade para se relacionar com as mulheres. Também não tinha muitos amigos, era tímido demais para isso. As olheiras fundas se destacavam na palidez do seu rosto, fazendo com que parecesse ter trinta e oito anos ao invés de trinta e dois. Tentou imaginar uma vida nova para si, mas seu desânimo o traiu. Tudo parecia impossível demais. Fez uma careta para si mesmo, e observou com ironia a imagem perfeita refletida no espelho. De todos os aspectos da sua vida, esse parecia ser o único sobre o qual ainda tinha domínio. Não importava o que fizesse, seu clone especular deveria imitá-lo.

Divertiu-se por algum tempo obrigando o seu reflexo a fazer poses ridículas, pelo simples prazer de estar no comando. Mas por fim achou tudo aquilo muito triste e tomou uma decisão. Pegou sua navalha e colocou-a contra o pescoço. Mataria a si mesmo e ao seu reflexo miserável. Encostou a outra mão na superfície do espelho, tocando o seu outro eu em um gesto melancólico de despedida.

Os dedos do seu reflexo fecharam-se com violência por sobre os seus. Os olhares se encontraram e Bruno sentiu a realidade distorcer e rodopiar à sua volta, como se fosse possível piscar sem fechar os olhos. No momento seguinte, a mão que segurava a navalha afastou-se devagar, por vontade própria. Os dedos afrouxaram a pressão sobre o cabo, e a lâmina escapou para o chão. O entrelace desfez-se e os braços abaixaram-se em sincronia. Sentiu sua boca mexer, mas foi o Outro que falou. “Desculpe, tive que agir. Você estava denegrindo a MINHA imagem!”. Seus olhos agora brilhavam com energia.

O Outro ajeitou o cabelo e Bruno, impotente, viu-se imitando o gesto. “Não deve ser difícil me sair melhor do que você!”, disse em tom de provocação, dando uma piscadela marota antes de virar de costas para o espelho. Bruno não pôde sequer olhar enquanto seu outro eu saía para começar uma vida nova.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Mistério em Mallorca


“Brace yourselves for the fury of the ocean wants its toll”
Fairyland – “Master of the Waves”


“Impossível!”, pensou o Inspetor Ortiz, caminhando em círculos pelo apartamento enquanto repassava mentalmente todos os detalhes da investigação. Ao entrar para arrumar o quarto, a camareira do hotel havia encontrado Johnny O’Doe morto sobre a cama. Ele estava roxo, com os músculos todos contraídos. As articulações da mão estavam esbranquiçadas de esforço, como se ele tivesse tentado se agarrar, literalmente, à vida.

Johnny tinha trinta e dois anos e era muito conhecido no mundo, tanto pela sua capacidade de lotar estádios com seus shows, quanto pela sua disposição para festas e bebedeiras. Viera à Espanha de passagem, apenas para receber um prêmio em Mallorca. Festejou a noite inteira, voltou ao hotel sozinho, e nunca mais acordou.

O relatório do legista foi tão assustador que o comissário optou por mantê-lo em sigilo. Apesar das especulações da imprensa girarem em torno disso, não foi encontrado nenhum traço de drogas em seu organismo. Seus pulmões estavam cheios de água salgada. Havia vestígios de areia de praia no nariz e sob as unhas, mas uma análise comparativa chegou à conclusão de que não eram de nenhuma praia da Espanha. A equipe forense esquadrinhou o quarto três vezes, mas não encontrou nenhuma pista. Nada. Tudo estava impecável. Nenhum sinal de arrombamento ou luta, nem de que o corpo fora transferido para a cama.

Sentado no chão do quarto, com a cabeça entre as mãos, Ortiz ficou horas tentando rever a cena do crime de diferentes ângulos, em busca do elemento faltante que daria uma explicação para tudo. Ele tinha que estar ali em algum lugar. Lembrou do seu treinamento na Academia de Policia, quando lhe disseram que todo investigador veterano era assombrado por um crime insolúvel. Sentiu um gosto amargo subir pela garganta. Talvez esse fosse o seu.

Sentindo-se derrotado, Ortiz resolveu voltar para a delegacia. Lacrou de novo a porta do quarto e caminhou até o elevador absorto em seus pensamentos. No caminho, cumprimentou com um aceno automático o faxineiro que lavava o chão do corredor.

O faxineiro acompanhou o inspetor com o canto dos olhos, sem interromper seu trabalho. Quando a porta do elevador se fechou, ele suspirou aliviado: ninguém percebera nada. Então ele soltou o primeiro botão da camisa para admirar o objeto que trazia pendurado no pescoço e que, de algum modo, conseguira subtrair do corpo do músico antes da polícia chegar. Ele contemplou fascinado o enorme medalhão de prata cintilante que pendia da corrente de elos grossos. Haviam seis pedras verdes dispostas em círculo engastadas na superfície do disco, emolduradas por relevos parecidos com letras, mas que ele não sabia dizer o que significavam. No dia seguinte, iria procurar um antiquário no centro. Esperava conseguir uma boa quantia por ele.

Naquela noite, em seu apartamento no subúrbio, o faxineiro caiu em um sono profundo. Assim como Johnny O’Doe, esqueceu-se de tirar o medalhão do pescoço. 


Sonhou que estava em uma praia de areias brancas. Atrás dele, uma cidade prateada brilhava sob a lua cheia. Não havia visto nada assim tão bonito em toda a sua vida. A cidade ancestral e misteriosa parecia tremeluzir junto com as estrelas do céu. Um vento forte desgrenhou os seus cabelos, e ele virou-se novamente para olhar o mar. Compreendeu que estava em uma grande ilha. O mar, negro e denso como a noite, envolvia a costa em um abraço frio. Somente os pequenos reflexos da lua na água indicavam movimento. E foi aí que ele percebeu que algo estava errado. O horizonte se aproximava rapidamente, alto demais. Uma imensa muralha negra de água e fúria, que lhe parecia ser cinco, dez, vinte, muitas vezes maior que ele. Tentou acordar, mas não conseguiu. Tudo aconteceu rápido demais. O mar atingiu a ilha e obliterou a cidade, como se o oceano se fechasse sobre ela. Ele tentou agarrar-se como pode no chão, nas árvores, nas construções prateadas, mas a água implacável castigou o seu corpo e o jogou de um lado pro outro, de modo que ele nem sabia mais para que lado ficava o céu. Estava ficando sem ar.

Na manhã seguinte, um novo corpo jazia retorcido sobre a cama em um quarto trancado por dentro. Mas para esse, ninguém deu importância. Quatro dias depois, o senhorio arrombou a porta por causa do mau cheiro. Enojado, ele só se aproximou da cama porque algo muito brilhante chamou sua atenção. “Isso deve bastar para compensar os três meses de aluguéis atrasados!”, disse para si mesmo, pegando o medalhão com o seu lenço e o guardando no bolso do seu casaco. E então ligou para a policia.

quarta-feira, outubro 14, 2009

Microcontos

I

– Vá embora! Você é um monstro! – ela disse, escondendo o rosto com as mãos.

A crueza das palavras o atingiu com o poder de uma bofetada. E foi a primeira e única vez que seus dez olhos verteram lágrimas.

II

Acordou no meio da noite atordoado e percebeu que estava sendo arrastado dentro de um enorme saco de lixo preto, em direção a um enorme caminhão que acelerava. Foi lançado com um baque surdo em um compartimento estreito e malcheiroso. Gritou e gritou, mas o som metálico implacável do compactador de lixo abafou os seus gritos.

III

– PARE! Você está me comendo com os olhos! – gritou a mulher horrorizada.

– Nossa! Que indelicadeza a minha! – respondeu ele, largando-lhe o braço. Usando uma pequena colher, arrancou-lhe os olhos friamente, e então destroçou-lhe o ventre a dentadas.

IV

Elias ficava horas contemplando a pele de Helena sob a luz da janela, encantado com o seu brilho acetinado. Apreciava sua textura e o seu aroma doce. Quando Helena lhe abordou de malas prontas, dizendo que ia embora para sempre, ele se apressou em trancar a porta à chave. Avançando sobre ela com uma faca de churrasco na mão, disse apenas: “Você pode até ir, mas a sua pele fica!”.

V

Todas as quartas-feiras o marido de Flavia viaja, e ela leva um completo estranho para sua cama. A quilômetros dali, Agenor limpa as mãos sujas de sangue sem tirar os olhos do vídeo. Fixa na memória o rosto do desconhecido que faz sexo com sua mulher. Quarta-feira que vem, irá atrás dele.

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