sexta-feira, setembro 25, 2009

Ilícito



Tem que ser hoje. – pensou Jaime – Não dá pra esperar mais! 


Suas mãos suadas apertaram ainda mais o volante, tentando conter o tremor que recomeçara. Hesitou por um instante, então arrancou a gravata com um único puxão. Limpou o suor da testa no punho da camisa e, nervoso, tornou a segurar o volante. Tinha que ser agora

Com um movimento brusco, o carro cruzou as três faixas da avenida em direção ao retorno, o que provocou um coro de buzinas em protesto. Jaime sequer percebeu. No estado em que se encontrava, ignorava por completo o caos que dominava a metrópole. Concentrar-se ficava cada vez mais difícil. A cada segundo, aumentava a consciência de que o que desejava estava ali mesmo, em um pequeno pacote oculto sob o banco do passageiro. 

Não posso! – ponderou, os dentes trincando de tensão. – Não com as ruas lotadas de gente e sensores para todo o lado. Quantos Vigilantes estariam misturados à multidão? 

Ele sabia muito bem o que acontecia quando alguém violava a Interdição. Presenciara a cena uma vez. Fora tudo muito rápido, mas ele nunca pôde esquecer os gritos. Não mesmo. Até os que nunca tiveram motivo para temer tinham pesadelos com isso. 

Enrijeceu-se no banco e obrigou-se a pensar em outra coisa, ou não conseguiria chegar até a estrada. Seus pensamentos flutuaram, desconexos, por alguns minutos e, por fim, pousaram nas lembranças da sua vida antes da Interdição. Ele não podia culpar-se por isso, sua geração era a que mais sofria. Tinha cerca de vinte anos quando tudo começou. 

Naquela época a cidade era mais suja e malcheirosa, mas as pessoas ainda tolevaram-se umas às outras. Conseguia-se comprar a droga em qualquer esquina e fazer uso dela na maioria dos lugares, sem qualquer tipo de sanção. Era um ritual pessoal. Mas o costume começou a perder a força e alguns lugares começaram a proibi-lo uso em respeito às pessoas limpas. Foi o bastante para que ele ganhasse novo fôlego. As proibições começaram a ser desrespeitadas, gerando constrangimento e preconceito. Então o governo resolveu interferir. 

Baseado numa antiga lei esquecida, o uso foi proibido em todos os lugares públicos fechados e a fiscalização endureceu. Em pouco tempo, as calçadas e ruas foram tomadas pelos usuários e por seu odor característico, formando uma verdadeira barreira humana para quem quisesse entrar ou sair de qualquer lugar. O preconceito intensificou-se, e suas manifestações ficaram cada vez mais violentas. A resposta do governo foi enérgica, proibindo qualquer uso público da substância. As ruas esvaziaram-se e a vida noturna da cidade quase desapareceu. Os Sujos trancavam-se em casa, sozinhos ou em pequenos grupos, e consumiam quantidades absurdas da droga. À essa altura, o preconceito se transformara em ódio mútuo, e os vizinhos Limpos começaram a reagir. 

Para evitar uma guerra civil, o governo baixou a Interdição, uma medida extrema e radical, proibindo totalmente o comércio da droga e banindo qualquer uso detectável por seus sensores em um raio de cem quilômetros em torno da cidade. A pena era a execução sumária e imediata. Muitos Limpos extremistas alistaram-se nas forças da Vigilância, e o que se sucedeu foi uma carnificina legalizada, que impôs a lei pelo medo. 

Passados quase dez anos, os Sujos que sobreviveram permaneciam escondidos. Poucos conseguiram de fato abandonar o vício, pois a droga era potente demais. Os Vigilantes, novamente misturados aos civis, só se revelavam quando ocorria uma violação. A sociedade vivia em tensão constante, pois não era mais possível saber quem era quem. As pessoas afastaram-se umas das outras, e assumiram um comportamento hostil. Mas a cidade estava limpa, uma utopia em verde e cinza. 

Jaime dirigia em alta velocidade pela estrada, os olhos fixos no horizonte. Até que seus olhos captaram ao longe o marco verde que procurava. Ao aproximar-se da grande placa na qual se lia “Limite da Interdição Municipal – Respire por sua própria conta e risco”, saiu para o acostamento, reduzindo a velocidade. Lançou o carro em uma pequena trilha de terra batida que conduzia a uma grande clareira na vegetação. Havia muitos carros estacionados ali. 

Encontrou um lugar entre eles e parou. Enfiou a mão ávida embaixo do banco do passageiro e apanhou o embrulho pardo em seu esconderijo. Desceu do carro aos tropeços e sentou-se sobre o capô. Dentro do pacote havia um maço de cigarros vagabundos, todo amassado, que comprara, por um preço absurdo, de um contrabandista. Segurou um deles entre os dedos e o cheirou, deliciando-se com o aroma. Bateu a mão livre nos bolsos, e percebeu, com horror, que não trouxera isqueiro ou fósforos. 

– Tome, use o meu! – um homem, sentado no capô de um carro próximo, atirou-lhe um isqueiro. O objeto descreveu uma curva perfeita no ar, e Jaime apanhou-o sem dificuldade. Ao fundo, pessoas conversavam animadas, e havia música alta vinda de um dos carros. 

Jaime acendeu o cigarro e jogou o isqueiro de volta, tentando lembrar se já tinha visto aquele homem na cidade. Não importa! – concluiu, soprando a fumaça de sua primeira tragada – Aqui, somos todos amigos!

sexta-feira, setembro 18, 2009

Coisas Simples

“Everytime the rain comes calling
I can't stop myself from falling
Into the darkness - into the madness”
Primal Fear – “Everytime it Rains”

Saltei por sobre a cerca branca baixa que delimitava o jardim dos fundos da casa com um movimento preciso, utilizando apenas uma das mãos como apoio. As poucas coisas que me trazem prazer são, de fato, muito simples.

Pousei de maneira suave, com os dois pés perfeitamente equilibrados sobre o imenso tapete verde que cobria toda a distância até a casa. A grama estava um pouco mais alta do que deveria, mas é assim que gosto dela. Fechei os olhos e respirei fundo, deixando aquele cheiro fresco delicioso invadir meus pensamentos. Todos os pêlos do meu corpo se arrepiaram ao sentir no vento frio que explodiu contra o meu peito o presságio de chuva. Meus lábios se abriram em um sorriso involuntário.

Caminhei pelo gramado até o anjo de pedra que se erguia solitário no centro do terreno. Haviam sombras escuras em seu rosto, que parecia triste hoje, misturado ao cinza chumbo do céu. Percorri com a mão esquerda as suas formas familiares, sentindo a textura da pedra antiga em meus dedos enquanto contemplava a imensa casa branca que se erguia à minha frente. Ela brilhava de um jeito estranho na luz agourenta que vazava por entre as nuvens zangadas, cada uma das muitas janelas era como um espelho perfeito do espetáculo da natureza que se formava. Todas as delicadas sensações condensaram-se em um fraco torpor de felicidade, que partiu do meu estômago e logo se alastrou para o restante do corpo. Meus pensamentos foram dominados pela ânsia violenta de intensificar e prolongar ao máximo esse sentimento, antes que ele pudesse desaparecer por completo.

A chuva fria começou a cair, intensa, desenhando pequenos riachos sobre a minha longa capa de chuva amarela. Mesmo oculto sob as sombras do capuz, meu rosto foi açoitado por milhares de gotas geladas que escorriam até a minha boca, e eu pude sentir na água o gosto amargo da condenação. Permaneci imóvel, paciente, esperando que a chuva pudesse levar embora todos os meus sentidos e me libertar da escravidão dos meus desejos. Mas a chuva passou, e nada aconteceu.

Com uma alegria inocente, quase infantil, me aproximei da entrada dos fundos da casa, que ficava sobre uma elegante plataforma de madeira avarandada. Subi com cuidado pela pequena escada de quatro degraus, evitando com uma agilidade inconsciente o terceiro deles, que rangia alto demais. Do lado esquerdo da porta, havia uma janela alta de vestíbulo, a única ali com uma tela de proteção. Corri a mão pela parte de baixo da tela, até alcançar a chave. Destranquei a porta e entrei, fechando-a com cuidado atrás de mim.

...

Felicidade extrema. Era o que eu sentia ao sair da casa. Tranquei novamente a porta dos fundos, recolocando a chave em seu esconderijo, e desci para o jardim. Fui recebido novamente pelo cheiro doce da grama alta molhada. Meus pés faziam um som agradável ao chapinhar pelo gramado encharcado. O vento gelado assobiava uma canção melancólica em meus ouvidos e, antes que eu pudesse chegar até a cerca, a chuva recomeçou. Como da primeira vez, deixei que ela me atingisse em cheio. Mas os pequenos riachos sobre o tecido amarelo impermeável da minha capa de chuva estavam agora tingidos de vermelho vivo. A chuva lavou todo o sangue, e então parou.

Saltei por sobre a cerca branca sem o menor sinal de cansaço. As poucas coisas que me trazem trazem prazer são, de fato, muito simples.

quinta-feira, setembro 17, 2009

Olha que Blog maneiro!


Recebi mais esse selo da Camilíssima Furtado (do Caixa de Pandora e também do Autores S.A.), uma fantástica escritora carioca que acompanha de perto este blog e tem me ajudado muito com suas observações. A ela meu muito obrigado pelo carinho e atenção!

Este selo, trocado entre os blogueiros, é uma forma de incentivar a divulgação de toda forma de cultura (arte, literatura, informação, etc). As regras para exibir esse selo são:

1. exiba a imagem do selo "Olha que blog maneiro"
2. poste o link de quem te indicou.
3. indique pessoas de sua preferência.
4. avise o indicado.
5. publique as regras.
6. confira se os blogs indicados repassaram os selos e as regras.

Segue a minha lista de indicações maneiras:

segunda-feira, setembro 07, 2009

Doce, mas não tão doce

“I know that you belong to me every night
You suddenly appear in my eyes
It happens when I sleep, it isn’t right
What I do in my dreams with you”
Steve Vai – “In my dreams with you”

De onde diabos apareceu essa mulher? Era como se ela soubesse exatamente o que dizer, o que pensar, o que fazer. Havia quilômetros entre nós, mas a sincronia era tanta que até irritava.

Tentei racionalizar o fato, e isso fez minha cabeça latejar de maneira violenta. Gemi, tentando não perder de vista as janelas piscando na tela do computador. Uma nova mensagem apareceu:

Beatrix diz: Não consigo parar de pensar em você... de ter certas idéias...

Era cada vez mais difícil resistir à tensão que surgia entre nós, embutida naquelas frases claras e perfeitas, equilibrada de maneira precária entre a espontaneidade e a premeditação. Meus dedos corriam pelo teclado sem precisar de comando, como se fossem uma extensão do meu subconsciente.

Marcos diz: Que tipo de idéias?

Não demorou nem 1 minuto, e outra resposta chegou:

Beatrix diz: Eu, você, seu perfume... e muitas más intenções...

Marcos diz: Você gosta de vinho?

Beatrix diz: Adoro!

Marcos diz: Então você terá sérios problemas com o meu perfume!

Beatrix: Por quê?

Marcos diz: Ele é inspirado em um vinho argentino. É suave, então você precisa chegar BEM perto pra sentir...

Beatrix diz: Não me provoque assim! Você não sabe do que eu sou capaz...

Minha imaginação começou a trabalhar com uma fúria louca, procurando entre as minhas fantasias latentes um arremedo de razão, algo que trouxesse um pouco de realidade para acalmar meu desejo.

Marcos diz: Você é tão perigosa assim? Qual a sua altura?

Belatrix diz: Um metro e sessenta e dois.

Marcos diz: Eu ia me sentir o próprio Gulliver perto de você: tenho um metro e noventa. Já estou até imaginando eu acordando amarrado numa cadeira com milhares de fiozinhos fininhos...

Belatrix diz: Cadeira, cordas, você... acho que estou tendo uma idéia bem melhor que a sua...

Marcos diz: Cadeira, cordas, você, seu perfume.... Poderia até adivinhar, mas prefiro que você me conte!

Belatrix diz: Você nunca ia adivinhar qual é o meu perfume... pouca gente conhece, menos gente ainda usa...

Senti meu coração dar golpes duros em meu peito quando uma imagem azulada formou-se em minha mente. A princípio apenas um borrão, como qualquer outra imagem subconsciente. Aos poucos, a cena foi ganhando

[foco. Uma sala escura sombras pretas alongando-se pelos cantos dos olhos dançando no ritmo pesado e denso da minha respiração uma cadeira no centro da sala ou será cozinha fria reflexo de luz bruxuleando na parede do meu lado esquerdo mas como eu sei que aqui é alto a luz não é da rua mas deixa um reflexo lindo quando passa pelo teu rosto e olhos que não vêem nada a não ser desejo deus não consigo me mexer e nem quero hipnotizado por teu cheiro doce porém não tão doce que se alastra e fixa em meus poros bailado tenso do teu corpo nu contra o meu pulso ardente por causa das cordas que me fixam imóvel admirando o brilho cinético do objeto metálico que cruza o ar nítido junto ao meu rosto cortante...]

Marcos diz: eu estou SENTINDO seu perfume... mas não sei o nome. Ele é doce, mas não tão doce... pelo menos não na sua pele!

Belatrix: Mas como é que você....? Hum, as pessoas realmente dizem que ele fica mais suave na minha pele....

Marcos diz: As paredes do seu apartamento por acaso são azuis?

Belatrix diz: ? Não! Brancas! Pelo menos de dia...

Marcos diz: Como assim?

Belatrix diz: Tenho um tipo de iluminação na sala que deixa tudo meio lilás à noite, por quê?

Marcos diz: ...tem um reflexo estranho na parede, parece reflexo de luz de carro? Mas não pode ser porque seu andar é alto...

Belatrix diz: Céus! ...tenho um cristal pendurado, entre a sala e a cozinha... sabe? É uma cozinha americana, aquela com balcão, integrada na sala. Conforme a luz entra ele...

Marcos diz: Pelo amor de Deus, qual é o nome do seu perfume?

Anotei o nome do perfume em um pedaço de papel, e desliguei de súbito o computador, ainda arfando de desejo e medo. As imagens continuavam a brilhar ácidas em minha mente, o cheiro parecia estar preso em meu rosto. Por que pareciam tão reais?

Corri até uma loja de perfumes e perguntei pelo nome que ela me deu. Claro que era o mesmo. Ele era mais forte no frasco, mais doce, mas era indiscutivelmente aquele. Passei o resto do dia tentando processar o que tinha acontecido, mas não havia lógica nenhuma. Tarde da noite, eu ainda rolava pela cama inquieto, com os neurônios pulsando a mil por hora. Por fim, o sono me alcançou.

...

Acordei com uma dor de cabeça pungente, a musculatura rígida em protesto. O mundo escuro à minha volta parecia lavado em tons de índigo e púrpura. Não consegui me mexer, eu estava amarrado em uma cadeira. E então senti aquele cheiro doce, mas não tão doce...

sábado, setembro 05, 2009

Vale a pena ficar de olho nesse blog!


Recebi esse selo da Camilíssima Furtado (do Caixa de Pandora e também do Autores S.A.). Ela é uma escritora de mão cheia e a indicação desse blog por ela me deixou indescritivelmente feliz!

Este selo, trocado entre os blogueiros, é uma forma de incentivar a divulgação de toda forma de cultura (arte, literatura, informação, etc). As regras para exibir esse selo são:

1. Postar o nome do blog que indicou o selo
2. Indicar 10 blogs e avisá-los
3. Verificar se os blogs indicados estão cumprindo as regras

Segue a minha lista de indicações. Estes valem mesmo a pena!


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