segunda-feira, junho 15, 2009

Aposta


“Ouvir vozes que ninguém mais consegue escutar
não é um bom sinal, mesmo no mundo da magia.”

J. K. Rowling

– Vou aumentar a aposta! – disse o homenzinho amarelado que estava no canto escuro, empurrando todas as suas fichas para o centro da mesa.

Gabriel achou graça no modo como o sujeito tentava esconder o nervosismo, girando com seus dedos alongados o grande anel de aço que usava no indicador da mão esquerda. Visto através da garrafa de whisky vazia, aquele rosto quadrado parecia ainda mais inumano.

“Está blefando”, murmurou para si enquanto os outros jogadores, um a um, desistiam da rodada. Via tudo em câmera lenta por causa da bebida. Passar da conta fora uma constante para ele nos últimos meses. Não lembrava direito como foi parar naquela mesa de jogo clandestina nos fundos do bar, nem de onde surgiram seus parceiros de jogo. Olhou para as cartas em sua mão e resolveu partir para o ataque. Perdera muito dinheiro essa noite. Precisava recuperar. Foi quando percebeu que ficara sem fichas. Frustrado, deu um soco na mesa, resmungando entre dentes:

– Eu apostaria a minha alma agora!

Fez-se um silêncio profundo na mesa. Gabriel ergueu os olhos e viu que todos olhavam pra ele com um profundo respeito.

– Aposta aceita! Mostre suas cartas! – disse o homenzinho, solene, erguendo suas grossas sobrancelhas.

– Era só modo de falar.... – Gabriel empalideceu. Seu mundo começou a girar acelerado, o ar escapando rapidamente dos seus pulmões.

Os outros jogadores protestaram. A aposta fora feita às claras e aceita. Eram testemunhas. Voltar atrás não seria uma atitude louvável.

Com o coração aos pulos, Gabriel teve vontade de sair correndo dali e sumir. Mas um pensamento maldoso logo veio à sua cabeça e o fez ficar onde estava. “Ele está blefando, eu não vou perder! Além do mais, fugir agora significaria perder tudo do mesmo jeito”. Acalmando-se, começou até a achar graça na solenidade dos outros jogadores. Então, confiante, abriu o seu jogo na mesa.

Dois ases, três damas: tinha um full house. Uma boa mão.

Sem mover um músculo do rosto, o homenzinho espalhou suas cartas sobre o tecido verde: 4, 5, 6, 7 e 8, todas de espadas. Straight flush.

Gabriel perdera! Sua vista escureceu, e ele teve a impressão de que todos os jogadores tinham rostos tortuosos, com estranhos olhos amarelos que o observavam desmaiar com a cara na mesa. O mundo desfez-se em preto.

...

Gabriel acordou assustado, com um suor gelado cobrindo seu corpo. Estava em seu próprio quarto, sem roupas. A cabeça doía a ponto de explodir.

– Bebe, desgraçado! – disse para si mesmo. – Nossa, que pesadelo, hein?

Levantou, ainda zonzo, e cambaleou em direção ao banheiro para lavar o rosto. Foi quando percebeu que em seu indicador direito havia um grande anel de aço liso. Seu coração disparou. Tentou tirar o anel do dedo. Não conseguiu. Encheu o dedo de sabão. Nada. O anel girou livremente no seu dedo, mas não soltou de jeito nenhum. Depois de passar quase uma hora tentando livrar-se do anel, desistiu. Vestiu-se e decidiu sair. Tentaria voltar ao bar da noite anterior.

Não conseguiu encontrá-lo. Poderia ser qualquer um, já que muitas vezes ia a mais de um por noite. Imerso no torpor semi-consciente da bebida, era muito difícil distinguir um do outro. Refez a parte do percurso que lembrava, mas nenhum bar da região tinha mesa de jogo nos fundos.

Desanimado, voltou pra casa. Ao entrar, tropeçou em pacote que havia sido enfiado por baixo da porta. Rasgou o embrulho. Era um caderno em branco, com capa de couro marrom. Não havia nenhum tipo de pista que pudesse dizer de onde aquilo viera, nem o que significava. Resolveu pensar nisso depois. Jogou o caderno na gaveta da escrivaninha e se atirou na cama. Suas pernas doíam por causa da peregrinação e a cabeça ainda latejava seu final de ressaca. Deixou-se levar pelo sono noite adentro, pois não ia ter forças para uma nova bebedeira.

...

Despertou quando o relógio bateu marcando meia-noite. Engoliu em seco ao lembrar que não havia relógios na casa. Imóvel na cama, tentou descobrir de onde vinha o som. Podia ouvir ao fundo os barulhos habituais da noite lá fora – o uivo triste dos cachorros da vizinhança, os passos apressados de um ou outro pedestre – mas as badaladas enchiam a casa, como se viessem das próprias paredes. Assim que o relógio parou, ele ouviu um murmúrio solitário ao longe, uma voz rouca de mulher. Tentou compreender o que ela dizia, mas não conseguiu. O murmúrio ficou um pouco mais intenso, e ele pôde distinguir que na verdade eram duas vozes. O mais estranho é que elas não pareciam conversar. Pela entonação, parecia mais que cada uma falava para si.

Uma brisa gelada fez Gabriel estremecer na cama. Sua respiração condensava em vapor ao sair de sua boca. De onde diabos vinha aquele frio, se a casa estava toda fechada?

As vozes se aproximaram mais, e agora pareciam ser três. Gabriel correu até a janela e a abriu, na esperança de encontrar na rua a origem das vozes. As calçadas estavam vazias. Às suas costas, as vozes continuavam. Identificou algumas palavras soltas no meio da confusão, embora sem sentido algum. Eram quatro vozes, ele tinha certeza agora, cada uma com timbre e entonação próprios. Vasculhou a casa: não havia mais ninguém ali, mas as vozes estavam cada vez mais intensas. No início pensou que recitassem algum tipo de oração, mas à medida em que elas ficaram mais nítidas, começou a entender: eram histórias. Lendas soturnas, sombrias, há muito tempo esquecidas. Falavam sobre deuses perdidos, amores proibidos, cidades arrasadas, buscas eternas. Todas contadas ao mesmo tempo. E elas não paravam de chegar, já passavam de uma dezena. Atordoado pelo falatório dissonante, Gabriel tampou os ouvidos. Não adiantou: as vozes vinham de dentro da sua cabeça, brigando entre si por sua atenção. Apavorado, correu pelo quarto batendo a cabeça contra a parede, em uma tentativa desesperada de livrar-se daquele turbilhão crescente de histórias alheias. Podia senti-las à sua volta, pares de olhos amarelos à espreita.

Ele compreendeu, então, que só havia uma coisa a fazer. Correu até a escrivaninha e vasculhou até tocar o couro macio da capa do caderno. Colocou-o aberto sobre a mesa, pegou uma caneta e, tentando focar ao máximo em uma das vozes, começou a escrever. Preenchendo as páginas em um ritmo frenético, foi silenciando uma história por vez. O anel ardia em sua mão, fazendo com que ele fizesse pequenas pausas para girá-lo no dedo, afim de aliviar a sensação. Já era praticamente dia quando a última história se foi.

E foi assim que as histórias passaram a visitá-lo pelo menos três vezes por semana, arrancando-o do seu sono para que ele as transcrevesse. Ao longo dos anos, Gabriel foi ficando cada vez mais cansado. Seu rosto, agora encovado, ostenta um olhar nervoso, inquieto. Cinco décadas depois, ele apenas espera por elas. E nas noites em que elas não aparecem, ele sai à procura de alguém que possa substituí-lo.

domingo, junho 07, 2009

Reencontro

"Blank face in the windowpane
Made clear in seconds of light
Disappears and returns again
Counting hours, Searching the night"

Opeth ‘Windowpane’

O apartamento já está quase vazio. Sobraram apenas o pequeno sofá e algumas fotografias emolduradas na parede. Esse excesso de espaço me deixa ainda mais ansioso, mas tudo que eu posso fazer agora é esperar.

Pela janela observo as crianças da vizinhança brincando no parque próximo, até que, com chegada da noite, elas retornam às suas casas como se estivessem sendo puxadas por linhas invisíveis, deixando a rua deserta.

Silêncio.

Subitamente eu tomo consciência do espaço ao meu redor. O apartamento inteiro parece estar vivo, consigo sentir sua respiração sob meus pés. Como um eco da minha percepção, a brisa noturna entra pela janela e arrepia até o último pêlo do meu corpo. Sinto na pele o farfalhar das folhas das árvores no parque, as batidas do coração de uma ave noturna, o orvalho se condensando nas janelas das construções vizinhas. Fecho os olhos e sinto o mundo convergir pra dentro de mim com violência, minha percepção se estende vertiginosamente por quilômetros como se as fronteiras físicas se desfizessem com a brisa gelada. De repente, bem próximo a mim, uma certeza.

Abro os olhos e viro para o interior da sala. Ela está lá, parada, a cabeça encostada no batente da porta. Morena, alta, pele muito branca. Olhando pra mim muito curiosa, com seus olhos negros profundos e serenos. Um olhar que eu conhecia bem.

– Você me encontrou!

– Você foi sutil como um terremoto.

– Ainda assim não tinha certeza que funcionaria.

– Aqui estou!

Ela se aproxima e me abraça, encostando a cabeça no meu peito. Um toque frio que me deixa completamente à vontade, me transportando no tempo e no espaço.

Vinte anos atrás, uma criança completamente assustada num hospital. Tubos, rostos preocupados e dor, muita dor. Os remédios que me deram fizeram meus cabelos cair, a boca tinha sempre um gosto amargo. Vinte semanas de paredes brancas e comida sem gosto, que quase nunca parava no meu estômago. Minha cabeça doía a ponto de explodir, minha vista turvava e, se eu estivesse em um dia de sorte, desmaiava de dor. Sempre que eu acordava dessas crises, uma garotinha da minha idade estava ao meu lado, me olhando com um par de olhos negros ansiosos, a mão sobre o meu rosto. Ela ficava conversando e brincando comigo até alguém entrar no quarto, quando ela dava um jeito de sumir.

Seus dedos percorrem suavemente meu rosto.

– A vida foi generosa com você.

– Eu nunca achei que eu fosse capaz de sobreviver àquilo.

– Nem eu!

O fato é que melhorei. Os médicos resolveram tentar mexer na minha cabeça pra ver se davam um fim naquilo. Ainda lembro de ter acordado assustado depois da cirurgia, ligado em um monte de aparelhos. Ela segurava minha mão firmemente. Olhou fundo nos meus olhos, me acalmou e me acariciou até o sono me levar novamente. Nunca mais a vi.

– Eu nunca consegui te esquecer!

– Eu nunca me afastei completamente...

– Então todos aqueles sonhos.... era você?

– Sim...

O seu abraço fica mais apertado, meu coração dispara, os profundos cortes em meus pulsos doem. Embora o sangue já comece a faltar em minhas veias, eu não poderia me sentir mais vivo. No meu íntimo apenas desejo que esse momento dure para sempre.

Mas a brisa voltou a entrar pela janela, enchendo a sala com a vida lá fora. Sinto um carro negro parar em frente ao prédio. Quatro homens descendo apressados. É ridículo como eles tentam não fazer barulho. Um deles está forçando a porta. Descobriram o que eu havia feito, afinal.

– Eu preciso ir – ela diz, enterrando ainda mais a cabeça no meu peito.

– Então isso é um adeus?

– Não! – ela disse olhando bem dentro dos meus olhos – Dessa vez, você vem comigo.

Então ela me beija, e o toque dos seus lábios pára o tempo, como se todo o sentido da vida estivesse aqui, nesse instante. Deixo minha alma seguir o seu destino enquanto ela saboreia cada sensação vivida, cada lembrança, cada segredo em mim. Eu sou completamente dela agora.

As batidas na porta não encontram resposta.

Dentro do apartamento, não vão encontrar nada. Apenas manchas de sangue no carpete.

terça-feira, junho 02, 2009

Sala de Embarque

“Cause it costs to be alive, my friend
And this life that someone merely gave to you
That's the price you pay
Minute by minute
You beg for a minute more
Kamelot “The Human Stain”

Aeroporto Internacional do Galeão, Rio de Janeiro. A sala de embarque estava lotada. Segurei mais forte a mão da minha filha que, do alto dos seus quatro anos, deve ter pensado o mesmo que eu: ela me encarou com seus olhinhos castanhos intensos e, com um longo suspiro, abraçou firmemente junto ao seu corpo miúdo a revista de colorir que havia acabado de ganhar. E lá fomos nós na difícil missão de encontrar, no meio daquele mar de gente, algum lugar pra sentar e aguardar os 30 minutos que nos separavam de nosso vôo para Miami.

Atravessamos o espaço com dificuldade, sem o menor sinal de cadeiras disponíveis. Já estava pensando em alternativas pra entreter a pequena se tivéssemos que esperar em pé, quando um casal começou a brigar. Uma moça bonita e muito arrumada, transtornada porque o seu vôo estava atrasado, insistia para que o seu marido, um sujeito atarracado de cara fechada, fosse atrás de informações. Eu conhecia bem o final dessa história pois tenho minha própria esposa geniosa me aguardando em casa. Não ia demorar. Dito e feito: o homem levantou de rompante, bufando, e saiu em direção ao balcão de informações. Sua esposa, assustada e envergonhada com os olhares que se dirigiam pra ela, saiu atrás dele. E nós corremos para ocupar suas cadeiras.

Confortavelmente instalados, entreguei àquelas mãozinhas ansiosas que agarravam o meu casaco o que elas queriam: seus lápis coloridos. Observei a alegria estampada naquele rostinho claro quando ela abriu o seu livro e começou a pintar, e então puxei do bolso meu BlackBerry para tentar adiantar algum assunto que pudesse aliviar a tortura do dia seguinte: uma segunda-feira cheia de compromissos após uma longa viagem noturna. No auto-falante, uma voz feminina disse que o embarque para o vôo 447 da Air France, com destino a Paris, estava liberado.

Nem bem tinha começado a responder as mensagens, minha filha subiu em sua cadeira e ficou em pé, apoiando seu peso no meu ombro esquerdo. Virei para chamar-lhe a atenção e encontrei o seu rostinho vidrado olhando por cima de mim. Sua expressão era de um êxtase meio incrédulo, mas o que deixou minhas pernas moles foram seus olhos: muito mais claros do que o normal, eles cintilavam em lampejos de amarelo e laranja, como se o sol incidisse diretamente sobre eles. Anjos, Papai! Olhando hipnotizado para os seus olhos, não consegui reagir ao que ela tinha dito. Olha! Quantos! Vendo que eu ainda não reagia, ela teve uma daquelas reações que a faziam tão parecida com sua mãe: ela colocou as pequeninas mãos sobre o meu rosto e o virou com firmeza para o lado oposto, para que eu visse. E a cena que eu vi foi a mais incrível de toda a minha vida. Uma fila enorme de anjos banhados em uma aura dourada, que os fazia tremeluzir de dentro pra fora e não deixava a vista se firmar por completo. Deviam ser uns duzentos. Tinham halos de luz sobre a cabeça e asas muito brancas, mas era possível distinguir, ainda que transfigurados, seus trajes humanos: executivos, turistas, estudantes, idosos, mães com seus filhos. Uns conversavam alegremente, outros falavam de problemas de trabalho, muitos brincavam em grupo enquanto outros apenas observavam a movimentação. Pouco a pouco, a fila foi saindo pelo portão em direção ao avião.

Permaneci incapaz de me mexer durante quase dez minutos, evitando até mesmo respirar até que o último anjo desaparecesse dentro do túnel. Senti apenas os braços de minha filha ao redor do meu pescoço e meus dedos deslizando involuntariamente sobre o teclado do telefone.

Quando eles se foram, foi como se eu acordasse de um sonho. As cores voltaram ao normal à medida que meus olhos foram se acostumando com as luzes artificiais do ambiente. Ninguém mais na sala dava sinais de ter visto o que nós havíamos visto. Todos pareciam completamente imersos em seus mundinhos particulares: revistas, livros, jornais, TV. Foi aí que eu tomei coragem e baixei os olhos para o telefone. Na tela, apenas cinco letras: A-D-I-E-U.

E o avião subiu, desaparecendo no céu.

Leia mais...

Related Posts with Thumbnails