domingo, maio 31, 2009

Imperfeitos


"Love, love is the only truth
Pure as the well of youth
Until it breaks your heart"
Kamelot “Nothing Ever Dies”

Houve uma vez um anjo de nome Sunahiel, que se revoltou contra a imperfeição do ser humano. Para ele, os homens haviam se desviado tanto da imagem de Deus, que não mereciam mais serem considerados a Plenitude da Criação. Questionando os desígnios de seu criador, ele então recusou-se a servir à humanidade.

Como anjos não precisam de fé, pois conhecem todos os mistérios celestes, a eles não é concedido o benefício da dúvida. Por isso, a punição para rebeldia ou desobediência é severa: Sunahiel foi condenado ao exílio na Terra.

Tão logo a sentença foi proferida, ele foi entregue ao querubim Uriel, “A Justiça de Deus”, que o aguardava com sua espada flamejante. Enquanto dois anjos o seguravam, suas asas foram arrancadas, deixando duas enormes cicatrizes. Seus gritos estremeceram todos os anjos que presenciavam a cena.

O seu espírito elevado, concebido para ser livre, foi então aprisionado em um corpo humano, mortal e muito mais limitado. E ele foi lançado na Terra, para viver entre os que havia negado.

A dor da mutilação e o trauma da encarnação, inconcebíveis para nós, varreram da sua alma as lembranças do Paraíso. Ao despertar na Terra, confuso e sem memória, não poderia jamais imaginar que não estivera ali desde o princípio. Mas seu espírito inquieto sentiria pra sempre que, incompleto, nunca mais encontraria a paz.

Mas nem tudo foi perdido. Como parte de seu castigo, Sunahiel conservou o dom de ver além da aparência humana. Podia ver as pessoas como realmente eram e enxergar claramente o que elas tinham potencial para ser.

Atraídas pelos resquícios de sua luz divina, muitas pessoas cruzaram o seu caminho. Enxergando nelas o que ninguém via, mais de uma vez ele se apaixonou profundamente, e o seu amor tinha o poder de trazer à tona o que estava escondido. Mas Deus, em sua sentença, o privou de ser verdadeiramente amado. Ele estava eternamente condenado a ver cada pessoa que amou, agora intensamente transformada, partir e entregar-se a outra pessoa.

Alheio a esses fatos, Sunahiel continua a vagar entre nós, os Imperfeitos, em busca de um novo amor que, ele acredita, dessa vez será para sempre.

quarta-feira, maio 20, 2009

O Legado

"Now that you are gone casting shadows from the past /You and all the memories will last"
Kamelot – "Don't you cry"

Com um movimento leve e doce, Cláudia abriu a porta. As forças lhe faltaram e, por um momento, ela teve que se apoiar no batente para não cair. A casa estava vazia demais sem ele.

Se alguém visse aquela figura frágil caminhando pelo corredor levando nas mãos uma caixa de papelão, tomaria-a por uma assombração, sofregamente dirigindo-se para a ala norte da construção. As lembranças estavam por toda parte: nos quadros na parede, na poltrona em frente à lareira e até mesmo no doce aroma de tabaco que já se dissipava no ar.

Trêmula, estancou em frente a uma porta trancada, no final do corredor. Hesitou. Sabia que o que viera buscar estava do outro lado, mas também sabia que não suportaria entrar no estúdio outra vez. Pensou por um momento, respirou fundo e, por fim, girou a maçaneta.

Ali estavam elas. Todas as fotos de Sérgio, cobrindo painéis, paredes, móveis. Para ele, paixão, hobby, compulsão. Para ela, seu último legado, tudo o que ele lhe deixou. Não podia deixá-las ali.

Cláudia aproximou-se lentamente do primeiro painel. Retirou o alfinete que prendia a primeira foto e colocou-a na caixa, sentindo seu coração despedaçar-se. Temia não conseguir terminar.

Colocando as fotos, uma por uma, na caixa, ela foi percebendo o porquê da sua beleza inquietante. Elas transpiravam vida, eram naturais. Sérgio nunca pedira para bater uma foto, tampouco que lhe fizessem pose, por isso elas continham sentimentos, expressões, alegrias, tristezas, decepções. “Uma foto é instante de uma vida inteira eternizado em um pedaço de papel.” – era o que ele dizia. E era o que se sentia ao contemplar sua obra.

Ele fotografara tudo: festas de família, passeios, viagens, visitas. Nunca fora muito impulsivo, mas vivera intensamente todos os momentos da sua vida, sempre com a sua câmera a tiracolo, registrando tudo. Quando lhe perguntaram porque ele fazia isso, ele respondeu apenas: “A vida é fugaz”. Mas que diabos! Por que ele tinha de estar certo? Por quê?

As lágrimas de Cláudia caíram sobre a caixa, juntando-se ao seu passado, às suas lembranças. Ela nunca se perdoou por tê-lo deixado ir sozinho para a casa da mãe naquela noite. Ela ainda se lembra do telefonema da polícia, do bombeiro entregando-lhe a câmera de Sérgio com a objetiva quebrada, que ela ainda guarda consigo. As fotos vão se somando na caixa. Tantos rostos, tantos lugares, não apenas uma, mas muitas vidas congeladas ali, em breves instantes. Pequenas partes de um todo muito maior.

“Vidas passam, lembranças se perdem, mas são os ideais que constróem o mundo. Estes não morrem jamais!

O estúdio vai ficando vazio, irreconhecível, triste. Ela sabe que não voltará mais lá, assim como sabe que sua vida nunca mais será a mesma.

Cláudia colocou a última foto na caixa e ergueu-a nas mãos. Não havia mais nada a fazer ali. Antes, porém, de fechar a porta atrás de si, ela colocou a caixa no chão, tirou da bolsa a câmera de Sérgio e bateu uma foto do estúdio vazio.

“Ideais não morrem”, pensou, trancando a porta.

quarta-feira, maio 13, 2009

Eau de Toilette

A lata de cerveja escapou da sua mão, rolando para junto das outras. Todas vazias. Era assim que seus olhos pareciam estar também. O vento soprava em seu rosto, tentando acordá-lo. Mas ele já não estava mais sentindo. Seu corpo, que há pouco estava solidamente sentado no parapeito da janela, parecia estar precariamente equilibrado no beiral. Na outra mão, um cigarro aceso lançava suas cinzas no vazio. Espalhadas pelo vento, elas alcançavam o chão, doze andares abaixo, aleatoriamente, deixando pequenas marcas no piso que separa o prédio da piscina. Mas ele não as vê. Embora parecesse catatônico, sua mente estava agindo rapidamente, apenas interpretando de uma forma diferente o que acontecia ao seu redor.

A brisa gelada parecia correr sobre o seu rosto, áspero por causa da barba por fazer, como uma mão a brincar com seus cabelos, ora penteando-os, ora desarrumando-os carinhosamente. O calor de sua jaqueta era envolvente como um abraço. Dois braços enlaçando-o pelas costas e apertando-o firmemente contra o peito, soprando um bafo quente e aconchegante em sua nuca. Podia até mesmo sentir o contato da pele, macia como veludo, quente, familiar. O torpor causado pela combinação de bebida e nicotina descia-lhe pela espinha como a dormência do amor, fazendo-o desejar adormecer ali, ouvindo as batidas do coração de sua amada. Aquele perfume no ar... estava em toda a parte e em lugar nenhum. Dois sentimentos coexistindo tempestuosamente, deixando os rastros do seu perpétuo confronto. Do seu lado esquerdo podia sentir o vazio da liberdade, um mundo estranho e assustadoramente hostil, porém irresistivelmente emocionante. Do seu lado direito, o conforto e a segurança claustrofóbica do lar, com o tédio da rotina e a certeza de saber onde está pisando. As duas sensações eram assustadoras: sentir o perfume e saber que ele não está ali. Tudo o que ele queria era que o tempo passasse depressa, para ele não mais sentisse alegrias ilusórias. Não mais acordasse desejando trocar a realidade pelo sonho...

Aos poucos, os fogos começaram. Por todo o lado as pessoas abraçavam-se e beijavam-se, mas seus olhos apenas perceberam o fulgor das estrelas artificiais que acendiam e apagavam freneticamente. Pensou no brilho daqueles olhos que conhecia bem e há muito aprendera a amar. Ultimamente, vinha aprendendo a odiá-los também, mas apenas o suficiente para manter sua sanidade. Lembrou-se, em seguida, dos lábios bem desenhados que outrora sussurravam palavras doces em seu ouvido. De quem seria o seu beijo de Ano Novo? Atormentado pelo pensamento, ele fechou seus olhos e rezou. Rezou muito, mas o perfume só foi embora quando o sono veio.

sábado, maio 02, 2009

Happy New Year!


"Silently we wander/into this void of consequence/my shade will always haunt her/but she will be my guiding light"
Kamelot – "Wander"

Eu sabia que não ia conseguir dormir tão cedo!
O dia foi praticamente idêntico: o mesmo céu azul com o mesmo vento gelado, a mesma ansiedade, o mesmo suor nervoso.

Eu é que mudei. Corri para tapar o buraco que eu mesmo abri em minha vida. Saí para descobrir do que eu sou feito, encontrar minha Pedra Filosofal.

É claro que eu ainda não encontrei, mas essa escolha tem feito toda a diferença.

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